09/05/11

INSTRUMENTOS MUSICAIS EM ENTRE DOURO E MINHO (Séc. XVII-XX)

"Num dos meus livros sobre a organística citei palavras de Ramalho Ortigão que revelavam a existência em antigas casas de desusados manicórdios, velhos cravos de charão , abandonadas  espinetas, em cujo teclado amarelecido se teriam dedilhado as primeiras composições de Palestrina e Cimarosa... (Ramalho Ortigão, O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, 1896, p. 91).

Ramalho Ortigão
Recorde-se que Ramalho Ortigão era do Porto. Ai viveu alguns anos e veio a ensinar francês no Colégio da Lapa do qual seu pai era director. Só por volta dos trinta anos rumou para Lisboa . Naturalmente, conhecia a sociedade portuense e seus hábitos, tal como constatemos na obra literária que deixou.


Igreja de Nossa Senhora da Lapa (Porto)

Segundo Sousa Viterbo, que fez estudos eclesiásticos no Porto, o cultivo da música em Portugal no séc. XVI tinha sobretudo lugar nas catedrais e conventos das ordens religiosas. Em muitas igrejas matrizes também se fazia boa música.

A mais importante organização musical, contudo, era a Capela Real, cuja história já foi suficientemente abordada.

Recorde-se que foi a filha de D. João III e de D. Catarina de Áustria, a imperatriz D. Isabel de Portugal, a criadora da Capela Real espanhola, composta de músicos portugueses e espanhóis. Por sua parte o imperador Carlos V manteve a Capela flamenga que o acompanhava nas viagens. A Capela da Corte ao serviço de D. Isabel sobreviveu após o falecimento da imperatriz (1539). Foi esta mulher com alma de artista, criada no ambiente da Corte portuguesa, que formou na corte de Espanha o gosto pela música de grande qualidade (H. Anglès, La Música en La Corte de Carlos V, Barcelona, 1965).*

Imperatriz D. Isabel

Outra figura real destacada foi a infanta D. Maria de Portugal, dada em casamento a Filipe II de Espanha que, no dizer de um bom diplomata da época sabia mais do canto que um Mestre de Capela.

Consta que Diogo d´Áranda, tangedor dos órgãos da casa de Santo António, consertou três cravos da rainha D. Catarina em 1538 (Viterbo, Subsídios para a história da música em Portugal, 1932).

Sabemos que no séc. XV a música tinha um lugar proeminente nos Paços dos Condes de Barcelos e Duques de Bragança no seu Palácio de Vila Viçosa. A Colegiada de Barcelos era sustentada pelos Condes. Em Vila Viçosa, para serviço da Capela Ducal e do palácio eram sustentados cerca de 25 instrumentistas, de 1584 a 1626. Está documentada ainda a presença do órgão na Capela. (Mercês de D. Teodósio II).

Interior Paço dos Duques de Bragança (Guimarães)
Palácio Ducal da Casa de Bragança em Vila Viçosa

Bastarão estes exemplos para se compreender que em todo o país, tanto a corte, como a nobreza, apreciavam e cultivavam a música sacra nas igrejas, e profana nos salões (...). Foi um movimento cultural que envolveu tanto a Casa Real como a nobreza mais rica de Portugal.*

Os factos relevantes desse movimento cultural foram conhecidos pela sociedade burguesa, Como os nobres procuraram imitar os modelos da corte, também os homens ricos, comerciantes abastados, e os homens da rua, procuraram copiar na medida dos possíveis tais comportamentos sociais, de olhar sempre atento às transformações em moda.

Neste estudo verifica-se que a burguesia rica do porto e região do Norte, a partir do séc. XVI, decidiu investir na música. Em casa de família ricas era de bom tom ter instrumentos, saber tocá-los nas horas de lazer e de festas íntimas.

Este estudo pretende reunir dados pouco conhecidos e revelar em primeira mão a documentação encontrada no Arquivo Distrital do Porto (ADP) sobre instrumentos, livros e materiais de música, importados através dos navios do Norte da Europa, que eram destinados ao Porto e à região de Entre Douro a Minho.

Se não se cobrassem impostos alfandegários não possuiríamos documentação escrita sobre muitos factos reveladores da vida social e da cultura de certas épocas históricas. os materiais desembarcados através da alfândega da Ribeira do Douro eram destinados em parte para uso das igrejas, e também para outros fins de carácter social ou familiar, como os bailes de anos , partidas e recitais. O gosto pessoal de fazer música, de a praticar na intimidade ou em pequenos grupos de amadores de música foi uma característica notável da época pré-romântica e mais ainda em pleno romantismo." (Manuel Valença, "Intrumentos musicais importados em Portugal - ARP SCHNITGER e órgão recentes", Ed. Franciscana...)*

Comentários:
* Não era o gosto o que determinava o uso e escolha dos investimentos na música do culto. O gosto sempre foi um aspecto secundário, visto que havia ainda consciência de que a excelência deve ser colocada para o Culto devido a Deus. O máximo esforço e empenho, os recursos materiais, eram também dispostos para o bem mais alto: Deus. O bom gosto, verdadeiramente, é assim aquele que existe por estar ordenado ao Bem, sendo que o restante é mau gosto.

* A música sacra é aquela própria do culto, e faz parte dele. A ideia de uma "música sacra" independente do culto é consequência da recente problemática em torno do Concílio Vaticano II (agravada pela invenção da nova Missa de Paulo VI) que, por incompatibilidades várias entre o Magistério e as novidades litúrgicas, abandona  a grande parte das produções artísticas de maior valor  na nossa civilização (seja musical ou não) deixando-a à mão da exploração comercial e do recreativo. A comercialização destes tesouros do culto são hoje mal chamados indiferentemente "música sacra" e que muitas vezes são na verdade "música religiosa". A selecção feita pela indústria discográfica ao longo do séc. XX não só introduziu o indiferentismo sobre a diferença entre "musica sacra" e "música religiosa" como introduziu vários critérios de "catalogação" para fins comerciais que são hoje equivocadamente tomados como  critérios reais, sendo que os reais são ignorados. É o caso da "musica gregoriana" que erradamente se julga excluída da música sacra, quando é esta o fundamento e modelo. A música sacra, sendo a auge, parte do culto para a sociedade tal como do mesmo Culto que em grau maior de grandioso milagre partem as Graças Divinas para toda a ordem social. Não me parece certo o "Nobreza mais rica", visto que a Nobreza estava primeiramente diposta segundo a sua função e não segundo a eventual maior ou menor riqueza: ao Duque pertence mais (responsabilidades e poder), ao Conde pertence menos (responsabilidades e poder), sendo que, se por algum motivo o Conde viesse a ter maiores bens materiais que o Duque (isto é um exemplo por alto) não haveria motivos para que o Conde tivesse uma Capela Musical mais numerosa que a do Duque, visto que todos estes aspectos, hoje deixados ao acaso do poder económico, eram nesse tempo tomados segundo critérios lógicos bem definidos. O Conde que tivesse menos cuidados com o Serviço de Deus na sua capela teria faltado com o seu dever para com Deus, para com a sua Casa (família e criados), para com a sociedade. Os sacramentos administrados nas capelas, o número de sacerdotes, o número de Missas, e um role enorme de coisas, estavam claramente definidos segundo as obrigações sociais de cada um. Evidentemente que quanto maior era a qualidade da música sacra melhores consequências musicais poderiam receber os fiéis. O amadorismo musical, ou o profissionalismo em espaços menos exigentes que o do Culto a Deus, acabava por ser uma repercussão da excelência da música sacra. Ao fim e ao cabo o Culto permitiu a existência de uma selecção dos melhores músicos subsidiados para o sempre renovado acontecimento da civilização Europeia: o Santo Sacrifício da Missa.

* O início do declínio da música sacra coincide (qual o motivo?!) com a crise ideológica semeada pelo Liberalismo e agravada pelas revoluções. Declínio esse que toma dimensões sociais: pretendeu-se acreditar que a excelência e a pureza cobiçadas deveriam ser roubadas a Deus para servir o homem. Deu-se um período longo de transição: os músicos são forçados pelos novos problemas, e pelas novas facilidades proporcionadas, a deslocarem-se do sagrado para o profano ao ponto de o profano ditar modas que não tardaram a evadir o espaço sagrado. Logicamente que tudo diz o facto dessas dificuldades novas dificultarem a situação da música sacra ao mesmo tempo que as novas facilidades apenas passam a existir para a música profana. Esta dessacralização, afinal, não é a da música e a de toda a ordem de coisas cobiçáveis mas é sim a da sociedade. São temas demasiado longos para tratar numa nota explicativa (que tem de existir por considerar que o texto segue distraidamente algo do "pensamento dominante" e não o da realidade).

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