15/03/13

INFANTE SANTO D. FERNANDO

Infante Santo
D. Fernando
Dos milagres que nosso Senhor fez pelos merecimentos do Santo Infante D. Fernando, no tempo que estava posto seu corpo nos muros de Fez.

"Quando meteram no ataúde o corpo deste virtuoso Senhor, que havia cinco dias que tinha finado, estavam seus membros em tanta desenvoltura como se estivesse vivo, nem saía dele algum cheiro mau. E assim lhe cruzaram os braços, e o lançaram sobre uma cama de louro verde, que lhe dentro no ataúde foi posto em seu lugar, foi coisa certa, e de maravilhar, que a maior parte das aves, que de toda aquela terra ao redor vinham ali dormir, porque as ameias, e todo o muro estava cheio de esterco delas logo se dali afastaram e nunca mais pousaram naquele lugar, nem fizeram alguma imundice na parte que respeitava ao ataúde, uma braça de uma parte, e da outra; no que todos atentavam, e se maravilhavam muito, parecendo-lhes que as aves tinham reverência àquele corpo santo.

Os vigias e roldas da vila, cada semana em certos dias, viam ao redor daquele ataúde tanto lume e claridade que não podiam ter os olhos em direito daquele lugar, em tanto que não podiam divisar de que era aquele lume.

Um renegado natural de Olivença, vindo uma noite de fora da vila, lhe apareceu aquela claridade e lume, no meio do qual o Infante estava, e parecia-lhe que o corpo era feito como de pomba e o rosto era de homem, que bem o conhecia porque muitas vezes o via ali em vida, e lhe falou. E deu o dito renegado testemunho de si, que viu o Infante estar em tanta glória que foi movido a se assentar em joelhos [ajoelhar], e de lhe pedir por mercê que o encaminhasse à salvação, e que o Infante voltou o rosto para outra parte, e lhe disse: Torna-te ao santo caminho, que deixaste. E nisto adormeceu ali, até o outro dia com o romper da alva.

Um mouro bárbaro houve arroido com outros, onde lhe deram duas feridas, uma na cabeça e outra em um ombro. E veio-se de uma aldeia à vila de Fez fazer queixume ao seu juiz; e quando chegou era já noite e as portas estavam fechadas. Lançou-se a dormir ao pé do muro, debaixo daquele ataúde, não olhando por ele nem lhe lembrando do corpo que ali estava. E quando veio pela manhã que abriram as portas, ele foi perante o juízo; quando desatou a cabeça e quis mostrar a ferida que recebera do adversário não apareceu sinal nenhum dela nem da outra do ombro. Perguntaram-lhe como lhe acontecera, e foi mostrar onde dormira debaixo daquele ataúde, e fizeram-no calar; e não obstante isto, ele o disse a muitos, e os que entendiam diziam que aquilo não podia ser outra coisa se não que o Infante se tornara mouro na vontade quando estava para morrer.

Manifesto é, que muitas pessoas são sãs de inchaços e de febres com o tocamento da terra donde caiu o pingo daquele corpo. E assim mesmo a lançam ao pescoço de bois e de alimárias que estão doentes, e recuperam a saúde; e daquele lugar onde tiram a terra, está já feito numa grande cova. Isto (conforme ao autor desta crónica) se fazia e acontecia então no seu tempo, em Fez, quando ainda lá estava o corpo do santo Infante. O que ainda agora pode ser, pois o lugar e terra aí ficaram.

Em Ceuta aconteceu a um religioso de S. Francisco, a quem chamavam Fr. Gonçalo, que estava em Santiago confessando um clérigo que ali viera doente de Roma, e estava em passo de morte, lhe disse: confiai nos muitos merecimentos do santo Infante D. Fernando que padeceu em terra de mouros trabalhos e morreu santamente na fé católica. E como se Fr. Gonçalo partiu, o clérigo tomou seu conselho com muita devoção, e logo nessa hora se levantou são e se veio ao Mosteiro, onde estava rezando o dito Fr. Gonçalo e lhe contou este milagre que Deus fizera por ele.

Em Lisboa aconteceu a um bom homem que era doente de uma grave doença que tinha, e não achando já quem o curasse ouvi-o falar a Fr. Rodrigo Pregador de Jesus (assim lhe chama a antiga crónica) em S. Domingos, de quanto este santo Infante padecera, e teve tanta fé em seus merecimentos que, um dia à noite, lançando-se na cama com grande devoção se lhe encomendou e adormeceu, e quando veio pela manhã achou-se são e sem sinal onde tivera a enfermidade. E estando Fr. Rodrigo uma sexta feira para pregar, o homem que era seu confessado lhe contou este milagre, o qual dito Fr. Rodrigo disse e divulgou na pregação.

No primeiro dia do mês de Junho da era de mil e quatrocentos e cinquenta e um anos, chegou a Santarém João Alvares (autor desta crónica, e secretário deste senhor, onde então estava o rei D. Afonso V deste nome, e sobrinho do santo Infante) e trazia as relíquias da freçura, coração, tripas, e tudo o que foi tirado do corpo deste Infante, quando em Fez os mouros o fizeram abrir: as quais relíquias tirou de lá secretamente o dito João Alves, e as trouxe a estes reinos. E estas relíquias vinham metidas em uma caixa de madeira coberta de damasquim preto, com o forro preto, acairelado de retrós com fechadura e pregadura dourada. E o dito senhor rei mandou que o dito João Alves, e João Rodrigues colaço do santo Infante que aí estava, levassem as ditas relíquias ao Mosteiro de S. Domingos de nossa Senhora da Vitória da Batalha, onde está a sepultura do dito Infante, e dos Infantes seus irmãos, na Capela real, e mui sumptuosa d’El-Rei D. João I de boa memória pai deles, e da rainha D. Filipa sua mãe, que também aí jazem. E chegaram também aí jazem. E chegaram a Tomar, onde acharam o Infante D. Henrique governador da Cavalaria e Ordem de Cristo, e irmão deste santo Infante, que estava de caminho para outra parte, e mandou tornar suas azémolas do caminho que levavam, e se foi ao dito Mosteiro da Batalha. E ali fez o dito senhor pôr as relíquias mui honradamente sobre o altar de sua sepultura, com tochas e velas ao redor (porque nesta capela d’El-Rei seu pai tem os Infantes, como El-Rei, cada um sua sepultura, é seu altar dedicado a cada qual, por sua ordem, e antiguidade das idades.) E mandou cantar as matinas, e uma Missa Plurimorum Martyrum, antes da manhã; e isto era quinta feira nove dias do dito mês de Junho. Acabado de se cantara Missa, foi ordenada uma solene procissão, onde o dito João Alvares abriu a caixa, e perante todos mostrou as relíquias. E des que tornou a cerrar a caxa deu a chave dela ao Infante D. Henrique, que a logo ali entregou ao Prior do dito Mosteiro da Batalha. E depois abriram a sepultura, e o Infante se assentou em joelhos [ajoelhou] ante as relíquias e fez sua oração, e tomou-as nas mãos, e trouxe-as por meio da procissão, e meteu-se com elas na sepultura, e assentou-as sobre um banco, coberto de cetim aveludado carmesim. E ao despedir, assentou-se em joelhos, e beijou-as, e mandou cerrar a sepultura. Em quanto ele isto fazia, os da procissão cantavam o responso dos Mártires, que diz: Posuerunt mortalia servrorum tourum escas volatilibus coeli, carnes Sanctorum tuorum bestiis terrae: Essuderunt sanguinem snctorumtuorum tamquam aquam in circuitu Jerusalem, et non erat qui sepeliret, com seu verso, e oração dos Mártires; e logo o dito senhor Infante deixou ordenado que cada dia naquele altar de seu irmão se cantasse Missa à conta de sua esmola, até que o senhor rei encaminhasse esta capela perpétua, em lembrança deste virtuoso senhor. O que hoje em dia se faz é que neste seu altar, e dos mais Infantes seus irmãos, e de seu pai, e mãe, se diz no dos Infantes em cada qual dos altares cada dia do mundo à prima, missa rezada, e no altar d’El-Rei seu pai cantada, com responso no fim dela, além dos ofícios que se lhes fazem no dia dos defuntos, e outros, com muita solenidade. E dos do Infante santo D. Fernando fazem os Religiosos do Mosteiro da Batalha, com capas de brocado de cores alegres, de que há muitas, e mui ricos ornamentos, que estes senhores, e outros Príncipes, que aí jazem, deixam; ainda que ofício do Infante sempre é de defuntos.

Em Pernes aconteceu, que à mulher do oleiro do dito lugar nasceu um grande lobilho em uma mão, e cresceu-lhe tanto que lhe estorvava o ficar, e o exercício de outras coisas. Estando um dia chorando, perguntou a uma Brites Eanes mulher de um Afonso Ribeiro, se sabia algum remédio para aquele mal que tinha, e ela lhe disse que se encomendasse com devoto coração ao santo Infante D. Fernando, e que ela lhe ficava por fiador, que lhe alcançaria do Senhor Deus saúde. Ela se foi para sua casa, e assentou-se em joelhos [ajoelhou-se], e com lágrimas se lhe encomendou, prometendo-lhe de levar à igreja um pão e uma candeia à sua honra. E pela manhã se achou sã, e sem sinal de lobinho.

E disse a dita Brites Eanes, que neste tempo em que o trigo era muito caro, tendo ela recebido do celeiro certos alqueires de trigo do mantimento de sem(seu?) marido, disse que pelos muitos milagres que Deus fazia acerca do seu provimento, que ela conhecia, que era pelos merecimentos deste santo Infante, a que se ela encomendava, tanto que se via em alguma necessidade, queria daquele trigo dar de esmola dois alqueires e meio a pessoas pobres. E mediu todo, que não era muito, e tirou aqueles dois alqueires e meio cada meio sobre si e depois que os repartiu aos pobres, foi-lhe logo necessário torná-lo a medir e achou de sobejo aqueles dois alqueires e meio.

Outras muitas coisas contou a dita Brites Eanes de milagres que viu e lhe aconteceram porque teve grande devoção neste santo Infante, e porque eram de causas miúdas (diz o autor desta crónica) não curei aqui de escrevê-las. E eu (que esta crónica solicitei ser de novo imprensa) sou testemunha da vista de muitos, e miraculosos sucessos, que aconteceram a alguns Religiosos doentes, e sãos, que se a este santo Infantes encomendaram no Mosteiro da Batalha, que hoje em dia são vivos, e conhecem assaz bem quantos milagres o Senhor faz por merecimentos deste santo infante. Em cuja sepultura está um buraco, e metem os seis uma cana que vai tocar no corpo do santo, e beijam e põem nos olhos e cabeça. E assim atando na pontada cana contas de rezar, e relicários, os metem pelo buraco para serem tocados nas santas relíquias, em que tem muita devoção..."

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