03/04/13

A IMPRENSA E O SEGREDO - Concílio Vaticano II

Pe. Ralph M. Wiltgen
"Todos os que estiveram associados, por qualquer motivo, aos trabalhos do primeiro Concílio do Vaticano, tinham recebido de Pio IX, em 1869, ordem de observar o segredo mais absoluto sobre todos os aspectos possíveis desses trabalhos. Depois de haver recordado que, sempre que as circunstâncias o exigiram, tinha sido imposta a disciplina do segredo a todos os que tinham participado dos concílios precedentes, o Papa acrescentava: "Hoje, mais do que nunca, esta precaução parece necessária, pois forças perversas, poderosas e destruidoras, estão atentas para aproveitar a menor oportunidade que surgir para arquitectarem odiosos ataques contra a Igreja Católica e sua doutrina". Esta rigorosa disciplina, alia-da à ausência de um Serviço de Imprensa do Concílio tinham obrigado os jornalistas a obterem informações por meio de subterfúgios. As informações assim divulgadas foram consideradas pelas autoridades eclesiásticas como carentes de objectividade e equilíbrio, por melhores que fossem as intenções dos jornalistas.

A fim de evitar que tal situação se repetisse no II Concílio do Vaticano, muito cedo foi decidido que se envidariam particulares esforços para que os jornalistas recebessem informações dignas de fé. Por ocasião de uma entrevista colectiva concedida pelo Cardeal Tardini a 30 de Outubro de 1959, na qual tomavam parte mais de 100 jornalistas, anunciou-se que seria instituído um serviço de imprensa para fornecer aos jornalistas "informações exactas e actualizadas de cada fase do Concílio". Este serviço de imprensa começou a funcionar em 18 de Abril de 1961 e foi inicialmente usado como órgão a serviço da Comissão Central Pré-Conciliar. Como tal, distribuiu 112 comunicados de imprensa durante o período de preparação do Concílio.

Em Junho de 1961, João XXIII esclareceu aos que estavam encarregados desses trabalhos preparatórios que era desejo dele não "esquecer os jornalistas", cujo desejo de se informarem do desenrolar do Concílio ele apreciava. "Contudo," acrescentou, "nós os convidamos com toda a cortesia a considerar que um Concílio Ecuménico não é uma academia de ciências nem um parlamento, mas, ao contrário, uma reunião solene de toda a hierarquia da Igreja, convocada para discutir questões referentes à vida ordinária da Igreja e ao bem das almas. É claro que tudo isso interessa aos jornalistas, mas também pede respeito e reserva".

Em Outubro deste mesmo ano, João XXIII recebeu a imprensa em audiência e declarou que tudo deveria ser feito para que ela tivesse informações detalhadas sobre a preparação e a evolução do Concílio. "De fato," prosseguiu, "temos plena consciência dos preciosos serviços que a imprensa poderá prestar fazendo conhecida a verdadeira face do Concílio e tornando-o compreendido e apreciado, como merece, pelo grande público. Seria muito para lastimar que, por falta de informações suficientes ou por falta de discrição e objectividade, um acontecimento religioso de tal importância fosse apresentado de modo tão inexacto que fossem deformados seu carácter e as próprias finalidades a que ele se propôs". Um mês depois, o Papa dizia à Comissão Central Pré-Conciliar que nem tudo deveria ser passado à imprensa: "Algumas deliberações devem necessariamente (...) ficar encobertas pelo silêncio".

Seis dias antes da abertura do Concílio, o Cardeal Cicognani, Secretário de Estado, benzia o Escritório de Imprensa do Concílio, que estava defronte de São Pedro e equipado com todas as facilidades modernas. Durante as quatro sessões, o Escritório distribuiu 176 boletins de notícias e 141 monografias em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, português, polonês, árabe e chinês. Antes mesmo da abertura do Concílio, mais de mil jornalistas do mundo inteiro haviam sido credenciados.

Mons. Vallainc, a quem tinha sido confiada a direcção do Escritório, foi, durante a primeira sessão, directamente ligado ao Secretário Geral, mas esta medida se revelou pouco satisfatória e foi modificada antes da segunda sessão. No dia da abertura do Concílio, ele distribuiu um boletim esclarecendo que o Escritório de Imprensa do Concílio faria "todo o possível para responder às solicitações dos jornalistas e facilitar-lhes a tarefa. Não há dúvida que este escritório está preso a certas limitações, pois as informações que ele publica devem ser previamente aprovadas, e ele, de forma nenhuma, pode violar as regras de reserva, de discrição e de segredo exigidas para o bem do Concílio".

A questão do segredo era objecto de três artigos do Regimento Interno do Concílio, aprovado por João XXIII dois meses antes de sua abertura. Sob a forma mais benigna, o segredo era imposto aos observadores das Igrejas cristãs não-católicas convidadas a assistir aos debates. Dizia o artigo 18: "Os observadores podem informar às próprias comunidades sobre o que ocorre no Concílio; mas devem guardar segredo para os outros, exactamente como os Padres Conciliares, por força do artigo 26". Estava sucintamente redigido o que dispunha como obrigação para os Padres Conciliares: "Os Padres devem guardar segredo sobre as discussões que ocorrem no Concílio e sobre as declarações de cada um". A disciplina do segredo imposta pelo artigo 27 era mais estrita ainda: "Os procuradores, os peritos conciliares, os empregados, os funcionários e todos os que trabalham no Concílio de-vem, antes da abertura, fazer um juramento perante o Presidente ou seu delegado, de desempenhar as próprias funções com fidelidade, guardar segredo a respeito de seus actos, discussões, as declarações dos Padres e os votos".

Apesar dos esforços heróicos despendidos por Mons. Vallainc para fornecer informações, elas eram tão anónimas que os jornalistas não tiravam delas o menor proveito. Mons. Vallainc acabou se encontrando num verdadeiro dilema. Sabia o que os jornalistas queriam, compreendia que suas pretensões eram legítimas, mas não os podia atender. Isto irritava os jornalistas com os quais ele estava diariamente em contacto. Se ele se aventurava a dar informações mais detalhadas que de ordinário, os Padres Conciliares a quem parecesse ver aí qualquer sinal de parcialidade, — tanto com referência a conservadores quanto a liberais, ou que julgassem a coisa injuriosa ao Concílio, — reclamavam junto às autoridades e Mons. Vallainc recebia novas instruções de Mons. Felici: seu papel deveria ser o mais neutro possível.

Durante toda a primeira sessão chegaram, por diversos meios, reclamações sobre a organização do Escritório de Imprensa. O Centro Espanhol de Informações, principalmente preparou um memorando dirigido ao Secretariado Geral; reclamações mais ou menos oficiais foram também enviadas pelo comité de imprensa da hierarquia norte-americana, e, isoladamente, por numerosos bispos de diversos países e por jornalistas. Melhoraram então ligeiramente os boletins de imprensa, mas nunca se tornaram realmente satisfatórios. Continuava a ser destacada a concordância que existia entre os Padres Conciliares; só se mencionavam discordâncias em pontos menores, mesmo quando ficava evidente, em seguida, que os pontos sobre os quais havia algum desacordo estavam longe de ser menores. Mas a apresentação dos argumentos aduzidos pró ou contra determinado assunto dava a impressão de que as opiniões eram comummente aceitas, o que de fato não era verdade.

Alguns Padres Conciliares, particularmente os canadianos, esforçaram-se para que se chegasse, pura e simplesmente, a suprimir a disciplina do segredo e a se admitir os jornalistas em todas as reuniões. Mas tal sugestão esbarrou em fortes oposições, não só da parte das autoridades do Concílio como da parte de numerosos Padres Conciliares. Durante a primeira sessão, nunca foi abolida, nem mesmo mitigada, a obrigação do segredo.

Eis porque não há como se admirar de que, em 16 de Novembro, o Cardeal Gonçalves Cerejeira, Patriarca de Lisboa, tenha pedido a palavra para declarar que se via obrigado a fazer uma "triste observação", a saber, que a disciplina do segredo era muito mal observada, pois tudo quanto havia sido dito na sessão precedente, mal passados dois dias já era do domínio público. Na verdade, grande parte do que os Padres Conciliares consideravam "vazamentos", tinha sido difundido pelo Escritório de Imprensa do Concílio. Cada dia, pouco depois da reunião, era feito um comunicado oral aos jornalistas do Escritório de Imprensa, e duas ou três horas depois as mesmas informações eram-lhes comunicadas por escrito, sob a forma de boletim. Numerosos Padres Conciliares acabaram por ficar, assim, numa posição embaraçosa: enquanto se abstinham de fornecer informações a pessoas estranhas ao Concílio, viam estas mesmas informações, na manhã do dia seguinte, publicadas pela imprensa.

O jornal La Croix, publicado em Paris pelos Assuncionistas, gozava de particular confiança da hierarquia francesa, cujos componentes sabiam que o La Croix lhes reproduziria as palavras sem dar caráter sensacional às novidades. O resultado foi que numerosas e longas citações de bispos franceses apareceram no La Croix. Mons. Stourn, Arcebispo de Sens e representante da hierarquia francesa junto à imprensa, explicaria mais tarde que os bispos franceses consideravam-se responsáveis perante seus fiéis queriam-nos manter informados; por isto também se tinham servido da imprensa.

Numerosos Padres Conciliares da Itália, França e Canadá enviavam semanalmente, aos respectivos jornais diocesanos, cartas com informações sobre o que se passava no Concílio. Algumas destas cartas, por exemplo as do Cardeal Montini, eram largamente reproduzidas pela imprensa. Mons. Cody, coadjutor do Arcebispo de Nova Orleães, enviava de Roma semanalmente, por telefone, um texto que era transmitido pelo rádio para manter os fiéis da arquidiocese a par do que ia ocorrendo no Concílio.

Por ocasião da abertura do Concílio foram criados vários Centros Nacionais de Informação, que logo se tornaram importantes em razão da necessidade que tinha a imprensa de tornar conhecimento do que ocorria; e eles começaram a exercer sobre as deliberações do Concílio uma influência absolutamente inesperada.

Desses centros, o mais desenvolvido, influente e regular foi o que a hierarquia dos Estados Unidos organizou, e podemos ver nisso uma das mais importantes contribuições dessa hierarquia no desdobramento do Concílio. Com o nome oficial de U. S. Bishop's Press Panel, funcionava dentro dos limites estabelecidos pelo regimento do Concílio e tinha por meta principal fornecer mais informações sobre os debates conciliares e esclarecimentos sobre as questões extremamente complexas que ali eram tratadas. Durante a primeira sessão, este "painel" era constituído de onze membros, todos especialistas em assuntos referentes aos trabalhos — teologia dogmática, teologia moral, Sagrada Escritura, ecumenismo, história dos conflitos, direito canónico, liturgia, seminários, etc. Esses especialistas esclareciam as definições e posições, e forneciam diariamente à imprensa dados sobre os assuntos tratados. À medida que o Concílio prosseguia, suas informações atraíam um número cada vez maior de ouvintes.

Também a hierarquia alemã criou um centro de informações, onde cada semana um bispo ou um teólogo procedia ali à leitura de um "texto-base". O escritório de informações aberto pela hierarquia espanhola  preocupava-se, sobretudo, em informar os bispos espanhóis. O centro de documentação da hierarquia holandesa publicou, durante a primeira sessão, uma série de quarenta estudos redigidos em holandês. As hierarquias francesa e argentina, criaram, igualmente, serviços de informação.

Por ocasião de uma investigação que fiz entre os jornalistas, antes do Concílio, o chefe do escritório de Roma da Newdweek, o Sr. Curtis Pepper disse-me: "Nada pode substituir as entrevistas concedidas por personalidades importantes". Citou-me então o exemplo da reunião do Conselho Mundial das Igrejas, em Nova Delhi, quando ele, bem como outros representantes da imprensa, puderam entrevistar participantes. Disse-me: "Isto dissipou muitas ambiguidades e trouxe como consequência que a Imprensa forneceu informações mais exactas". Isso foi-me confirmado Pelo Sr. Robert Kaiser, do escritório do Time em Roma, que me disse: "A imprensa Precisa acima de tudo ter acesso aos bispos e teólogos, livres para falar francamente sobre um evento humano que permite a homens inteligentes dialogar".

A maior parte dos Padres Conciliares não confiava na imprensa. Receavam ser mal citados, recusavam-se a se encontrar com os jornalistas desconhecidos, ou a cooperar com eles. Além disso, falavam línguas tão diversas que a maior parte dos jornalistas não poderia entrar em contacto a não ser com aqueles que pertencem a seu grupo linguístico. A minha condição de sacerdote e de membro de uma ordem internacional relacionada com muitos idiomas colocava-me, neste ponto, em situação vantajosa.

Como os demais jornalistas, eu tinha que superar o obstáculo do segredo. Persuadido pelo Sr. Pepper e pelo Sr. Kaiser da importância das entrevistas colectivas, eu tinha-me convencido de que era indispensável achar o meio pelo qual algum Padre Conciliar pudesse comunicar com a imprensa sem receio de infringir a legislação do segredo. Além disso, era preciso que aquilo que ele dissesse tivesse uma relação directa com o Concílio: ater-se às teorias não seria suficiente. A solução que encontrei foi, na verdade, muito simples. Em vez de pedir a um Padre Conciliar para falar sobre o que ia acontecendo na aula conciliar, eu limitava-me a pedir-lhe que falasse em ter-mos práticos sobre as necessidades e desejos de sua própria diocese, referentes ao assunto que estava em discussão no momento. Não haveria violação do segredo e a imprensa obteria informações actualizadas, pois era claro que o que fosse dito por determinado bispo reflectiria os pontos de vistas expressos, fosse por ele ou por outros, na aula conciliar.

Para dissipar a preocupação que algum bispo tivesse em que as suas palavras fossem erroneamente citadas, eu propunha-lhe que primeiro me concedesse uma entrevista privada, cujo conteúdo eu redigiria e submeteria à sua aprovação; e posteriormente traduzido. Na entrevista colectiva cada jornalista receberia, em sua própria língua, um boletim contendo bastantes citações, que poderia livremente utilizar. Tal procedimento garantiria a exactidão do que a imprensa poderia publicar, dissipando ao mesmo tempo o receio dos Padres Conciliares. As colectivas seriam feitas em duas e até três línguas, e os boletins seriam distribuídos em seis. Foi assim que, durante a primeira sessão o Divine Word Newd Service (Agência de Notícias Verbo Divino) pôde organizar, para 8 arcebispos e 7 bispos de doze nações, 15 conferências de imprensa que foram profusamente citadas. Esta prática estendeu-se às sessões seguintes."

(WILTGEN, Ralph. O Reno Desagua no Tibre - O Concílio Desconhecido)

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