02/04/13

CONTRA A MITIFICADA "ESCRAVATURA" DA SEITA DOS FILÓSOFOS (III)

(continuação da II parte)
D. José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742 - 1821)
Nascido em Campos (Brasil)

CONCORDÂNCIA DAS LEIS DE PORTUGAL E DAS BULAS PONTIFÍCIAS,
Das quais umas permitem a escravidão dos Pretos de África, e outras proíbem a escravidão dos Índios do Brasil.

 §. XI. Sendo pois o Índio pouco hábil para a agricultura, que era o fim da escravidão, e indomável pelo meio da força; pois que em quanto ali houvesse uma serra; uma brenha, e um asilo para um selvagem, seria mais fácil destruí-los do que sujeitá-los de repente a um trabalho para eles novo; e conhecendo-se também, que era mais fácil chamá-los para a comunicação dos Portugueses pelos meios doces e pacíficos da Religião, foi necessário proibir a escravidão daqueles Índios e declará-los livres, para que uma vez entrados na Sociedade se fossem com o tempo, e com o exemplo, acostumando ao trabalho e a um novo género de vida (4).

§. XII. O projecto da Escravidão de África e de aproveitar os braços que aliás eram supérfluos, ou perdidos para a África para irem ser úteis à cultura das terras da América, especialmente do Brasil, nasceu, quem o creria, da Humanidade mesma da doce e terna afeição que Las Casas (5) tinha pelos seus amados Índios (dos quais ele foi o Protector no mesmo tempo em que era o seu Apóstolo). Muitos dos Índios sucumbiam debaixo de trabalhos por eles não usados. Eles se destruíam e se aniquilavam sem [terem dado] quase algum proveito para os seus mesmos Conquistadores: era-se pois reduzido a possuir sem fruto terras tão dilatadas, para cuja aquisição se tinha metido tanto interesse, ou abandoná-las por falta de braços para as cultivar.

§. XIII. O Preto da África apresentou os atributos da força e das qualidades necessárias para cultivador das terras da Zona tórrida; conheceu- se que as Nações de África estavam já acostumadas aos trabalhos da Agricultura debaixo de um Sol ardente e que já de tempos antiquíssimos estavam no costume da escravidão, e de venderem os braços que lhe eram pesados, inúteis, ou prejudiciais; costume que, ou a necessidade do seu maior bem, ou do seu menor mal, lhes tinha ensinado; ou que lhes tinha sido transmitido, o que era transcendente a todos os outros Povos do antigo Mundo sem exceptuar a Europa. Se lançou mão deste meio sem alterar o estado em que se achavam aquelas Nações, melhorando-se a condição daqueles desgraçados, que pelas Leis da sua nação eram já condenados a serem escravos, mortos, ou vendidos para fora do seu País, levando-os para a obediência das Leis protectoras, e defensoras da vida, e da existência de tais escravos, leis desconhecidas no seu País.

§. XIV. Os Secretários da Seita Filosófica ainda que dizem que Las Casas teria sido um homem inconsequente: pois que no mesmo tempo em que insistia pela liberdade dos Índios da América trabalhava por fazer reviver o odioso comércio da venda dos escravos da África, abolido desde longo tempo na Europa, e tão contrário aos sentimentos da Humanidade como aos princípios da Religião (6). Contudo não dizem qual foi o Autor das Leis da abolição nem como a Lei, a Religião, e os costumes da Europa podiam obrigar ou servir de regra às Nações bárbaras de África; Lei que com tudo nunca foi aceita por muitas Nações cristãs da Europa, e à qual nem os mesmos Mouros da Europa ainda até hoje se sujeitaram.

§. XV. Um dos primeiros declamadores contra o comércio dos escravos é o mesmo que sustenta que a liberdade e a civilização da Europa não foi devida às leis nem à Humanidade (7), mas sim ao Comércio: ele levantando-se até à abóbada celeste onde toca a frente modesta do justo, como ele diz, só de lá é que ele pôde verdadeiramente gritar "Eu sou livre"; e só de lá é que ele se sentiu ao nível do seu objecto, e donde vendo a seus pés estas belas Províncias [Brasil], em que florescem as Ciências e as Artes e que as trevas da ignorância tinham tão longo tempo ocupado, ele perguntou como soberbos e repetidos apostrofes "Quem foi o que abriu estes canais? Quem foi o que enxugou estas planícies? Quem foi o que ajuntou, vestiu, e civilizou estes Povos? Então todos os homens ilustrados, que estavam em tais lugares, de uma voz unânime responderam (diz ele) "Foi o Comércio, foi o comércio."" (7). Eu porém cá de um canto da terra, em voz baixa e submissa lhes diria "Foram as descobertas dos Portugueses, foi a escravidão da África." Diriam os da nova seita "Que blasfémia!" - eu vou dar as provas.

§. XVI. Quanto às descobertas dos Portugueses, o mesmo autor da História Filosófica, que tanto nos grita lá de cima, é quem o diz (8) "A Europa começava apenas a respirar e a sacudir o jugo da escravidão, que tinha envilecido os seus Habitantes desde as Conquistas dos Romanos e do estabelecimento das leis feudais.... Então o Direito da propriedade começou a introduzir-se entre os Particulares e lhes deu aquela qualidade de independência, sem a qual a mesma propriedade não é mais do que uma ilusão.... Sem a descoberta de Vasco da Gama a chama da liberdade se apagaria de novo, e talvez para sempre. Os Turcos iam substituir o lugar dessas Nações ferozes que, das extremidades da terra, tinham vindo substituir o dos Romanos para serem, como eles, o flagelo do género humano, e às nossas bárbaras instituições teria sucedido um jugo ainda mais pesado: este acontecimento era inevitável se os desumanos vencedores do Egipto não tivessem sido rechaçados pelos Portugueses nas diferentes expedições que tentaram na Índia; as riquezas da Ásia lhes assegurariam as da Europa."

§. XVII. Quanto à Escravidão da África; sabe-se que não há nem pode haver comércio senão daquilo que sobeja do necessário de cada um; porque ninguém vende o pão de que precisa para a boca: isto que procede a respeito de cada um em particular procede a respeito do todo de uma Nação de uma parte do Mundo, etc. Logo não pode haver comercio sem haver supérfluo. Sabe-se mais, que os objectos e a base do Comércio são os trabalhos da agricultura e da indústria dos homens, aquela que sobeja das necessidades de cada um.

§. XVIII. Donde pois veio à Europa, de repente, [de] uma agricultura um supérfluo tão superabundante, que em pouco mais de dois séculos lhe produziu um comércio tão rico e tão extenso, que excedeu a todo o comércio anterior demais de 6 ou 7 século? Quem não vê que esta tão extensa agricultura, este tão grande supérfluo, e tão repentino, é o produto do trabalho de milhões e milhões de braços que [estavam] vegetando em uma escravidão ociosa por toda a África [e] foram de repente metidos em acção; acção que deu a todos a vida, ainda mesmo aos condenados a morrer, assim como um corpo ocioso, e sem trabalho?

§. XIX. Em uma Sociedade qualquer ou em uma Nação bem regulada é absolutamente necessário para o bem, e existência de todos, que uns semeiem o pão, outros o amassem, outros o cozam, outros o guardem, outros o distribuam, etc. De todos estes trabalhos o que é feito ao sol e à chuva é o mais prezado, e pede forças físicas proporcionadas; mas ele é absolutamente necessário e indispensável debaixo da pena de morrerem todos: os trabalhos feitos ao sol e à chuva são sempre constrangidos e obrigados, ou sejam pela força da fome ou pela força dos que têm a maior força na mão; aos que trabalham ao sol e à chuva chamam os Filósofos "escravos dos outros"; chamem-lhes como quiserem; a verdade é que muitos dos trabalhos que faziam os trabalhadores da Europa foram substituídos e feitos pelos trabalhadores escravos da África; os da Europa foram passando para a classe dos que trabalham à sombra, para a classe dos Artistas, dos Comerciantes, dos Sábios, e finalmente para a classe dos ricos, dos livres, dos civilizados.

(continuação, IV parte)

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