28/03/14

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (V)

(continuação da IV parte)

Esta causa que seguis, que em tudo vos impasse; que tanto vos atribula, e vos consome, que tanto baralha vossos pensamentos, que vos faz cometer tantos pecados de ódio, de maledicência, de contumélias, de temerários juízos, e de culpáveis complacências; esta causa, digo, não é vossa, nem vos toca por maneira alguma, mas e causa de um estrangeiro, de uma Nação, de um Príncipe, que não e o vosso, e que o não será jamais. E se eu vos disser ainda mais: Esta causa, porque tantos se decidem, e por quem têm tomado partido; é a causa de iniquidade, da perfídia, da opressão, do roubo, da violência, da irreligião, da ruína total de todos os Povos, de todas as leis, de todas as constituições, que os homens se haviam há tantos séculos formado, e à sombra das quais viviam tranquilos, e descansados? Para que vos martirizais, e consumis tanto? Para que vos privais voluntariamente de tantos cómodos? Para que vos expondes com ela, e por ela a tantas desgraças, não sem cano, e dano muitas vezes gravíssimo, e irreparável da vossa mesma Pátria que aborreceis como ingratos, e a quem perseguis como ferozes monstros? Mas inúteis são, e serão sempre meus brados, se eles forem dar nos ouvidos de alguns, que existirem tomados, e possuídos de tão cega, e abominável paixão. Vão sempre de abismo em abismo, nenhuma razão os convence, nenhuma experiência os desengana, nenhuma desgraça os contem, nenhuma infâmia os envergonha. Mostrai-lhes a Capital em sustos, mostrai-lhes as ruas, e as praças atulhadas de miseráveis desterrados, e fugitivos com os pés descalços, os vestidos imundos, os rostos macilentos, os olhos afogados, e quase extintos de pranto; fazei-lhes escutar os ais, que rompem de seus corações partidos com que pedem um pão, que lhe prolongue a imperfeita morte que consigo arrastaram, que já não e vida, e existência; mostrai-lhe tantas mães, ambulantes estátuas de desventura, apertando nos descarnados braços os filhos, ou cadáveres, que buscam lânguidos os defecados peitos, donde tiram não o leite, mas as últimas gotas de já nem tépido sangue; abri-lhes aquela porta da pobre casa, onde a meus olhos se ofereceu, e patenteou o mais terrível, doloroso, e sensibilíssimo espetáculo, que os séculos têm visto sobre esta grande cena de horror, e desventuras, que se chama Mundo; uma, e mais desgraçada mãe, mas já cadáver frio, com a gelada cabeça ainda encostada na descarnada mão, com os olhos mal fechados, os pés descalços, e estendidos, e um triste menino envolto em miseráveis panos, pegado ao frio peito lívido, e horroroso como a sepultura, mal sustendo nos trémulos beiços o último arranco, e procurando por um instinto natural conservar a vida sobre um despojo da morte. Levai-os aos mais levantados montes desta mesma Capital, e mostrai-lhes os arraiais dos bárbaros, e como indignada a terra debaixo de seus pés infecunda, e abrasada; mostrai-lhes os grossos turbilhões de fumo rasgados pelas labaredas da sacrílega conflagração de tantos Povos, de tantos Templos, de tantos Mosteiros, de tantos monumentos que o valor, e a Religião tinham levantado, e os séculos tinham respeitado; mostrai-lhes tantos campos talados, e ermos, onde nem túmulo encontram os que deles tiravam, e arrancavam com suor o sustento da vida: mostrai-lhes tantas donzelas violadas aos olhos de seus mesmos pais, tantas matronas profanadas na presença de seus mesmos esposos: mostrai-lhes os ardentes vestígios da lava, que seu seio vem vomitando o vulcão vandálico por onde quer que passa; mostrai-lhes... eu direi tudo, mostrai-lhes um só Francês, mostrai-lhes o inferno, e ouvir-lhe-eis dizer tranquilos, e barbaramente estúpidos, que tudo é preciso para se ultimar a paz marítima; que o bem de causa continental traz consigo estes ligeiros males, bem como a ordem, e formosura da Natureza traz consigo a oscilação da terra, e o pavoroso aparato da tempestade, e do raio; que se os homens conhecessem os seus verdadeiros interesses, que é aceder à causa continental para vir o futuro brilhante, e se começarem os canais a abrir, e os Poetas a ressucsitar, até haviam de apetecer, que esta conflagração, que reduziu a cinzas duas estéreis, e insignificantes Províncias, se estendesse a todas as manufacturas Britânicas... Oh Céus! E porque não direi que estas blasfémias contra a razão, e contra a Natureza talvez saíssem de algum daqueles asilos da piedade, que a mão de nosso primeiro Monarca levantara, e tão liberalmente enriquecera! Monstros vomitados pelo Inferno, desonra da espécie humana, e eterno opróbio do nosso perseguido Império! Corramos um véu espessíssisimo, e sombrio sobre estes horrores.

É pouco ver, como temos visto, tantos indivíduos tocados deste mal, levando-o consigo por onde quer que dirigem os passos para indicionarem, e corromperem os outros. Eu sei de algumas casas, e o tenho escutado de outras, que seriam por caridade fraternal, e por união de vontades uma viva imagem do Paraíso, se nela não houvesse penetrado o espírito de partido. Todos os ânimos ai existiam algum dia concordes; não se escutava a expressão do ódio, e da amargura; o discreto império, e a devida dependência conservavam no seu seio uma tranquilíssima paz. Mas a desgraça, ou mais depressa o Demónio, quis que um, ou dois daquela família se deixassem embair, ou arrastar do funesto partido dominante no Mundo, repentinamente fugiu a paz daqueles ditosos lares; o ódio, a alteração, a contumélia transformaram aquela casa num campo de batalha, ou numa fornalha sempre ardente de desordens, e dissabores, e talvez que não só para a geração presente, mas também para a geração futura.É possível que num Mundo, onde já são tantas as causas, e tão poderosos os motivos dos dissabores, e onde as paixões humanas, e os verdadeiros vícios dos homens semeiam tantas discórdias, e põe tantos obstáculos à caridade fraternal, queiram os homens acinte com este espírito de partido, chamar sobre si novos desgostos, novas inquietações, novos pecados, fazendo nossos os negócios alheios, nossas as causas da iniquidade, e da perturbação publica, e particular dos outros Povos, e Nações estranhas?

Ainda chega a mais sua demência, e frenesim: querem fazer próprias as ofensas alheias. Dilatam o excesso, e a loucura de ter, e de tratar como ofensores, e como inimigos aqueles, que ou são doutro partido, ou não são daqueles, que eles seguem. A este cúmulo de mal se chega em Lisboa, como se chegou em Jerusalém depois que se formou a liga, e o partido contra o Redentor do Mundo. Que razão havia para tratar como excomungado o mancebo cego de nascimento, e lançá-lo fora de Sinagoga? Nenhuma outra razão mais do que haverem sido restituído por Jesus Cristo como um milagre à luz do dia, de que nunca gozará: Et ejecerunt eum foras. E que razão havia para fulminar a mesma pena contra seus progenitores? Não havia outra mais que haverem estes cedido à evidência, e terem testificado por gratidão aquele milagre. Conspiraverant Judei, ut siquis eum consiteretur esse Christum extra Synagogam fierit. E que razão têm tantos, e tantos de separar-se, não sem escândalo, do ânimo, e da pessoa de um íntimo parente, de um honrado Concidadão, a quem são unidos com os laços de sangue, e a quem devem ser mais estreitamente unidos com as prisões da Caridade Cristã? Não há outra razão senão ser aquele um parente, um amigo, uma família, que não sentem como eles sentem, nem seguem aferradamente o partido que eles seguem. Ora eu não creio que alguém de vós me queira perguntar se as expostas hostilidades serão escandalosas fraudes, se tantas obras, e tantas palavras de quem é pai o espírito de partido, sejam pecados? Se esta pergunta fosse feita a algum engelho mais agudo, alguém entendimento mais ilustrado do que o meu,mas dominado desta paixão, e contaminado desta peste, eu fico que lhe diria que não eram pecados. Eis aqui outra não menos deplorável cegueira, que esta paixão derrama nos entendimentos, que chega a sufocar, e aniquilar neles os últimos vestígios da razão, e da justiça.

(continuação, VI parte)

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