24/03/14

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (III)

(continuação da II parte)

E não se vê isto manifestamente no que aconteceu ao Verbo incarnado feito homem entre os povos da Judeia? Nos primeiros anos de sua vida santíssima começaram os homens a se dividir a seu respeito em diversas, e opostas opiniões; mas toda a diversidade, e contrariedade consistia ao princípio em acreditá-lo mais, ou menos Santo, e em o conhecer, ou não o conhecer pelo esperado Messias. Quem dizem os homens, que seja o Filho do homem? Perguntou Ele um dia a seus discípulos, e eles lhe tornaram: "Uns dizem que sois João Baptista, outros Elias, outros Jeremias, ou uns dos outros antigos profetas". Porém quando por artifício, e instinção dos Fariseus este grande objecto passou a formar partidos, e opiniões, não se tratou mais de sua maior, ou menor santidade, mas sobre a bondade, ou sobre a malícia, e não sobre qualquer malícia, mas sobre a maior que se pode considerar num homem, a malícia de um hipócrita, de um sedutor do povo, de um inimigo declarado das legítimas autoridades. Uns diziam "é bom"; outros diziam "não, mas é um sedutor das turbas". Dizer de Jesus Cristo, que ele não era nem tão grande homens, nem tão grande Santo, como outros o publicavam, e aclamavam, seria uma contradição de quem julga de um modo diverso dos outros homens; mas isto não seria uma contradição própria do espírito de partido. A este espírito tocava, e competia, segundo a sua natureza, levar as coisas às últimas extremidades, e acumular a Jesus Cristo as mais escandalosas maldades, até o fazer autor de nefandas rebeliões, e enormíssimos atentados contra o público sego: Seducit turbas, afirmando que estas asserções não eram efeitos de meras conjecturas, mas argumentos da verdade, e da experiência. Nos scimus, quia hic bono pector est.

Brasão de Portugal
Mas por ventura acreditariam eles intimamente isto mesmo que publicavam de Jesus Cristo? Sim, Senhores, eles acreditavam isto que diziam, e tanto mais o acreditavam, quanto mais crescia, e se dilatava a fama de seus milagres, e quanto mais robustas eram as provas de sua santidade, e virtude, porque na verdade não é crível a animosidade, a dureza, e a cegueira, que derrama na alma do homem a mágica força disto, que se chama espírito de partido. Eu não sou um homem,nem de carácter, nem de autoridade, de letras, e talentos tais, que possa suscitar partidos; mas se o fosse, e em vós houvesse as disposições necessárias para me seguir, em primeiro lugar eu vos pediria que o não fizésseis, se o não pudésseis, ou o não soubésseis fazer de outra maneira que não fosse a do espírito de partido; e vos direi também que o meu nome, a minha fama, e a minha opinião não merecia ser defendida com tanto dispêndio da vossa paz, e com tanto escândalo quanto causaria um cisma, e uma separação hostil entre vós. Ainda vos direi mais, que todo o vosso afã, e trabalho de nada me aproveitaria; pelo contrário acenderia, e inflamaria contra mim ainda mais aqueles espíritos, que fossem escravos desta paixão, da qual é próprio crer, e dizer todo o mal possível dos outros, quanto mais oprimida se vê da autoridade contrária, e das contrárias razões. Em mim tendes a prova, e a experiência desta verdade quando me resolvi, e determinei atacar a mais ridícula de todas as manias, a quem eu honraria muito, se lhe desse o nome de opinião. Vós sois testemunhas das soltas tempestades que contra mim levantou o espírito de partido: fama, nome, reputação, tudo foi sacrificado.

E que será do homem quando se resolva a tomar um partido por um parecer, por uma prática, por um sistema, que seja perigoso, ou contrário à Fé? Acontecerá o que aconteceu sempre na Igreja de Deus, que Ele, e seus sequazes depois de não longo tempo de tumultuosas, e fraudulentas disputas, longe de se confessarem vencidos, metem debaixo dos pés as mais veneráveis autoridades, e até as formais determinações, e decretos do Trono Apostólico. Acontecerá, que cessando algum medo, ou pavor que os impeliu a darem alguns sinais, ou a mostrarem alguns vestígios de submissão, tornem de novo a espargir dissimuladamente, e como entre sombras as sementes de sua nunca deposta, nem renunciada opinião. Perguntai um pouco a qualquer dos Povos rebelados contra a verdadeira Religião, se se interessaram no princípio pela doutrina, que este ou aquele inovador lhes anunciava? Responder-vos-á que não, mas que visto ter o mesmo inovador a astúcia, ou o talento de se formar um partido, dilatando-o, e engrossando-o até no meio da Plebe, então pouco a pouco passará da submissão devida à igreja, à indiferença; da indiferença à animosidade; da animosidade a um manifesto furor; e levado deste ímpeto cego, e fanático, fechando os ouvidos aos brados da razão, e da justiça, chegara até a tomar nas mãos as armas, e a estabelecer, e arreigar com elas a própria crença. E tende por coisa assentada, que esta, que vos tenho fielmente exposto, é a história de todos os cismas, e de quantas heresias tem até agora despedaçado, e ainda despedaçam o seio puríssimo, e santíssimo da nossa Fé. Estes cismas, e estas heresias sem o espírito de partido que as ajudasse, e sustentasse, ou não houveram tido existência, ou não a teriam fora daquelas cabeças ou ignorantes, ou vulcânicas, e sacrílegas, que as inventaram, e produziram.

Esta experiência tão notória, e tão lastimosa, como sabe qualquer que sabe alguma coisa, aumenta sobre maneira a admiração que me causa o silêncio funesto, que os Oradores sagrados têm guardado sobre uma semelhante paixão, deixando de admoestar os Povos sobre a força incrível que ela possui de obscurecer, e anuviar os entendimentos mais claros, de seduzir as almas mais penetrantes, de subverter, e arruinar as consciências mais delicadas até as tornar surdas, e desprezadoras de todos os clamores do Evangelho, e de todos os respeitos devidos à Religião.

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