06/03/15

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (IV)

(continuação da III parte)

Eis aqui porque eu vos peço, que se vos é amável a verdade, que a todas as vistas vos deve ser amabilíssima, se é para vós apreciável o dote singularíssimo da razão que Deus vos há dado, eu vos peço, que vos nãos alisteis jamais, nem militeis debaixo das revoltosas bandeiras de qualquer partido; vede que se endurecerá de modo tal o vosso coração, que chegareis a ser dominados, e pisados como vis escravos. Vigiai sempre, e não vos deixeis levar senão da equidade; abri os olhos à verdadeira luz, segui sempre seu fulgor, e seus impulsos, por mais que contra vós se arma, e queira guerrear o empenho, a antipatia, ou a amizade, que em nenhum coração deve ter tanta força, e predomínio que o faça inimigo da verdade, ou menos parcial da justiça. Conheço perfeitamente, e até por experiência, que existem entre nós muitos, que querem escusar em si o espírito de partido com as leis da amizade; mas inútil, e indignamente o querem, porque as leis de uma verdadeira amizade são inimigas, juradas de suas acções irracionais, e de seus cegos transportes. Onde, senão entre gente bárbara, e inculta, se viu, ou se escutou jamais este estranho modo de discorrer: aquele é do número de meus amigos, logo é preciso que eu entre sem outra razão em seus sentimentos, e paixões, é preciso que eu me vista de seu caracter, que me ponha de sua parte, e que por ele peleje; é-me preciso perseguir quem o persegue, infamar quem o infama, discorrer como ele discorre: ofenda-se embora a Fé, a justiça, e a verdade. Onde, senão entre gente bárbara, e povos devastadores, se escutou este modo de pensar, e de sentir? E qual é o Povo, até à época do presente Vandalismo, onde se não escutou aquela contrária sentença nascida no mesmo seio da Idolatria: Amigo até aos Altares, que quer dizer que é péssima, e detestável aquela amizade, a qual se sacrifica ou a verdade, ou a caridade, ou como acontece não raras vezes, a mesma Religião.

É neste passo que o zêlo me referve na alma, e todo o me abrasa o coração, e mo devora pelo bem da Pátria, e da Religião, me obriga a clamar contra as contradições em que andam consigo mesmos os modernos Filosofantes, cujo pestífero, e subtil veneno tantos indivíduos têm corrompido até no meio do fidelíssimo Povo Português. Estes Filósofantes com um dilúvio de palavras até corruptoras de nossa maternal linguagem, dizem em todos os lugares, e escrevem em todas as páginas, que o homem deve fazer uso da própria razão até nas mesmas matérias de Fé, e nos mais profundos Dogmas que assim clamam, que assim dogmatizam, e assim se assoalham por gravíssimos pensadores são os mais levados do espírito de partido, que é o maior, e o mais declarado inimigo de toda a razão. E é possível que não conheçam, que discorrendo desta arte fazem da própria razão um uso inútil, e arrogante, devendo fazer da mesma razão uso proveitoso, e necessário! É necessário, e proveitoso o uso que se faz da razão humana nas coisas humanas, mas é arrogante, e inútil o que se faz da razão humana nas coisas divinas, e é tal a cegueira destes soberbíssimos átomos da sapiência gazetal, que quando falam das coisas humanas, falam, e sentem conforme a índole da paixão do partido que tomaram; e quando falam das coisas divinas, não  querem acreditar senão naquilo que chega a compreender um entendimento órfão de luzes, e uma razão sempre envolta nas sombras da ignorância; duas vezes cegos, nas coisas humanas onde poderiam ver, e não querem; nas coisas divinas onde quereriam ver, e não podem: Videntes non vident, et audientes non intelligunt.

Mas tornando a vós com o discurso, e eu vos considero bem alheios de quererdes introduzir o espírito de partido em matérias de Religião; mas se em outras matérias lhe dais lugar, é porque ignorais o que ele seja, e quão impróprio, e indigno pareça da razão humana; se o conheceis, eu fico que não querereis fazer a vós mesmos uma tão grande injúria como é aquela de dever dizer sempre: eu amo, eu aborreço, eu louvo, eu reprovo, eu sigo este parecer, eu refuto aquele outro, mas não sei o porquê, nem outra razão me posso dar mais que um certo instinto semelhante àquele, que move as operações dos brutos, e que lhe moveria a língua, se tivessem o dom da palavra. Mas se quereis desviar-vos desta mancha da natureza, e até do perigo de a contrair, e se quereis para isto aceitar-me um maduro conselho, e escutar, e entender qual seja a prática mais segura, sabei que nas diversas, e encontradas opiniões que todos os dias surgem, e nas contínuas vicissitudes das coisas humanas, que todos os dias vão fazendo tão grande estrépito pelo Mundo, se vos não tocarem por algum respeito do vosso estado, e condição, não tomeis nelas parte nem com a obra, nem com a palavra, nem com o pensamento, se tanto vos for possível, se não quereis perder o tempo, a paz, a consciência, e faltar a vossos essenciais deveres por muito vos intrometerdes nos alheios.

Esta causa que seguis, que em tudo vos impasse; que tanto vos atribula, e vos consome, que tanto baralha vossos pensamentos, que vos faz cometer tantos pecados de ódio, de maledicência, de contumélias, de temerários juízos, e de culpáveis complacências; esta causa, digo, não é vossa, nem vos toca por maneira alguma, mas é causa de um estrangeiro, de uma Nação, de um Príncipe, que não é o vosso, e que o não será jamais. E se eu vos disser ainda mais: Esta causa, porque tantos se decidem, e por quem tem tomado partido, é a causa da iniquidade, da perfídia, da opressão, do roubo, da violência, da irreligião, da ruína total de todos os Povos, de todas as leis, de todas as constituições, que os homens se haviam há tantos séculos formado, e à sombra das quais viviam tranquilos, e descansados? Para que vos martirizais, e consumis tanto? Para que vos privais voluntariamente de tantos cómodos? para que vos expondes com ela, e por ela a tantas desgraças, não sem dano, e dano muitas vezes gravíssimo, e irreparável da vossa mesma Pátria que aborreceis como ingratos, e a quem perseguis como ferozes monstros? Mas inúteis são, e serão sempre meus brados, se eles forem dar nos ouvidos de alguns, que existirem tomados, e possuídos de tão cega, e abominável paixão.  Vão sempre de abismo em abismo, nenhuma razão os convence, nenhuma experiência os desengana, nenhuma desgraça os contém, nenhuma infâmia os envergonha. Mostrai-lhe a Capital em sustos, mostrai-lhes as ruas, e as praças atulhadas de miseráveis desterrados, e fugitivos com os pés descalços, os vestidos imundos, os rostos macilentos, os olhos afogados, e quase extintos de pranto; fazei-lhe escutar os ais, que rompem de seus corações partidos de mágoa, os dolorosos clamores com que pedem um pão, que lhe prologue a imperfeita morte que consigo arrastaram, que já não é via, e existência; mostrai-lhe tantas mães, ambulantes estátuas da desventura, apertando nos descarnados braços os filhos, ou cadáveres, que buscam lânguidos os defecados peitos, donde tiram não o leite, mas as últimas gotas de já nem tépido sangue; abri-lhes aquela porta de pobre casa, onde a meus olhos se ofereceu, e patenteou o mais terrível, doloroso, e sensibilíssimo espetáculo, que os séculos têm visto sobre esta grande cena de horror, e desventuras, que se chama Mundo; uma, e a mais desgraçada mãe, mas já cadáver frio, com a gelada cabeça ainda encostada na descarnada mão, com os olhos mal fechados, os pés descalços, e estendidos, e um triste menino envolto em miseráveis panos, pegado ao frio peito lívido, e horroroso como a sepultura, mal sustendo nos trémulos beiços o último instinto natural conservar a vida sobre um despojo da morte. levai-os aos mais levantados montes desta mesma Capital, e mostrai-lhes os arraiais dos bárbaros, e como indignada a terra debaixo do seus pés infecunda, e abrasada; mostrai-lhe os grossos turbilhões de fumo rasgados pelas labaredas da sacrílega conflagração de tantos Povos, de tantos Templos, de tantos Mosteiros, de tantos monumentos que o valor, e a Religião tinham levantado, e os séculos tinham respeitado, mostrai-lhes tantos campos talados, e ermos, onde nem túmulo encontram os que dele tiveram, e arrancavam com suor o sustento da vida: mostrai-lhes tantas donzelas violadas aos olhos de seus mesmos pais, tantas matronas profanas na presença de seus mesmos esposos: mostrai-lhes os ardentes vestígios da lava, que de seu seio vem vomitando o vulcão vandálico por onde quer que passa; mostrai-lhes... eu direi tudo, mostrai-lhes só Francês, mostrai-lhes o inferno, e ouvir-lhe-heis dizer tranquilos, e barbaramente estúpidos, que tudo é preciso para se ultimar a paz marítima; que o bem da causa continental traz consigo estes ligeiros males, bem como a ordem, e formosura da natureza traz consigo a oscilação da terra, e o pavoroso aparato da tempestade, e do raio; que se os homens conhecessem os seus verdadeiros interesses, que é aceder à causa continental para vir o futuro brilhante, e se começarem os cânones a abrir, e os Poetas a ressuscitar, até haviam de apetecer, que esta conflagração, que reduziu a cinzas duas estéreis, e insignificantes Províncias, se estendesse a todas as manufacturaras Britãncias... Oh Céus! E porque não direi que estas blasfémias contra a razão, e contra a Natureza talvez saíssem de algum daqueles asilos de piedade, que a mão de nosso primeiro Monarca levantara, e tão liberalmente enriquecera! Monstros vomitados pelo Inferno, desonra da espécie humana, e eterno opróbrio do nosso perseguido Império! Corramos um véu espessíssimo, e sombrio sobre estes horrores.

(continuação, V parte)

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