06/03/15

SERMÃO SOBRE O ESPÍRITO DA SEITA DOMINANTE NO Séc. XIX (V)

(continuação da IV parte)

É pouco ver, como temos visto, tantos indivíduos tocados deste mal, levando-o consigo por onde quer que dirigem os passos para inficionarem e corromperem os outros. Eu sei de algumas coisas, e o tenho escutado de outras, que seriam por caridade fraternal, e por união de vontades uma viva imagem do Paraíso, e nela não houvera penetrado o espírito de partido. Todos os ânimos aí existiam algum dia concordes; não se escutava a expressão do ódio, e da amargura; o discreto império, e a devida dependência conservavam no seu seio uma traquilíssima paz. Mas a desgraça, ou mais depressa o Demónio, quis que um, ou dois daquela família se deixassem embaír, ou arrastar do funesto partido dominante no Mundo, repentinamente fugiu a paz daqueles ditos lares; o ódio, a alteração, a contumélia transformaram aquela casa num campo de batalha, ou em uma fornalha sempre ardente de desordens, e dissabores, e talvez que não só para a geração presente, mas também para a geração futura. É possível que num Mundo, onde já são tantas as causas, e tão poderosos os motivos dos dissabores, e onde as paixões humanas, e os verdadeiros vícios dos homens semeiam tantas discórdias, e põem tantos obstáculos à caridade fraternal, queiram os homens ácinte com este espírito de partido, chamar sobre si novos desgostos, fazendo nossos os negócios alheios, nossas as causas da iniquidades, e da perturbação pública, e particular dos outros Povos, e Nações estranhas?

Ainda chega a mais sua demência e frenesim: querem fazer próprias as ofensas alheias. Dilatam o excesso, e a loucura de ter, e de tratar como ofensores, e como inimigos aqueles, que ousam doutro partido, ou não são daqueles, que eles seguem. A este cúmulo de mal se chegar em Lisboa, como se chegou em Jerusalém depois que se formou a liga, e o partido contra o Redentor do Mundo: que razão havia para tratar como excomungado o mancebo cego de nascimento, e lançá-lo fora da Sinagoga? Nenhuma outra razão mais do que haver sido restituído por Jesus Cristo como um milagre à luz do dia, de que nunca gozará: Et ejecerunt eum foras. E que razão havia para fulminar a mesma pena contra seus progenitores? Não havia outra mais que haverem estes cedido à evidência, e terem testificado por gratidão aquele milagre. Conspiraverant Judei, ut siquis eum confiteretur esse Christum extra Synagogam fierit. E que razão têm tantos, e tantos em separar-se, não sem escândalo, do ânimo, e da pessoa de um íntimo parente, de um honrado Concidadão, a quem são unidos com os laços de sangue, e a quem devem ser mais estreitamente unidos com as prisões da Caridade Cristã? Não há outra razão senão ser aquele um parente, um amigo, uma família, que não sentem como eles sentem, nem seguem aferradamente o partido que eles seguem. Ora eu creio que algum de vós me queira perguntar se as expostas hostilidades serão escandalosas fraudes, se tantas obras, e tantas palavras de quem é pai o espírito de partido, sejam pecados? Se esta pergunta fosse feita a algum engenho mais agudo, algum entendimento mais ilustrado de que o meu, mas dominado desta paixão, e contaminado desta peste, eu fico que lhe diria que não eram pecados. Eis aqui outra não menos deplorável cegueira, que esta paixão derrama nos entendimentos, que chega a sufocar, e aniquilar neles os últimos vestígios da razão, e da justiça.

Mas se estas coisas são verdadeiras, dirá algum de vós, como verdadeiras se mostram pelos factos, não poderá, nem deverá jamais haver no Mundo diversidade de génios, ou diversidade de opiniões, e pareceres. Respondo, que pode haver opiniões, e pareceres diversos, mas sem espírito de partido, dizer o contrário seria privar a razão humana, e o entendimento humano de sua honesta, e devida liberdade. O Apóstolo não só permitiu a cada um poder sentir nas coisas, e negócios humanos que acontecem, como razoávelmente lhe parecer, mas abundar alguma coisa em seu mesmo sentido, e opinião: Unusquisque suo sensu abundet: só proibiu abundar com aquele calor, pertinácia, e emulação, que apagam, ou que minoram o espírito da caridade: Charitas non aemulatur, non inflatur, non agit perperam. Deus criou o Mundo, como ele protesta no Eclesiástico, o pôs nas mãos dos homens, deixando-o a seus estudos, e a suas disputas. E por isso poder-se-há dizer que ele introduzira no Mundo o espírito de partido? A Igreja permite a diversidade de opinar nas coisas não essenciais, e todavia indecisas, de Religião, e porventura semeou ela entre seus filhos a zizânia da discórdia? O Senhor concedeu, e aprovou a divisão das possessões, a divisão dos domínios, e por isto é Deus acaso o autor das contendas, e dos litígios? As guerras, os litígios, as animosidades, as fraudes que os acompanham, não vêm de Deus, mas das nossas paixões. Unde bella, et lites in vobis? Non ne hic ex concupiscentiis vestris? E verdadeira gerra é aquela que se faz com o espírito de partido, e guerra não  qual a faziam os Monarcas Católicos, mas qual a faz o monstro que quer tiranizar o Mundo, na qual toda a perfídia lhe parece honesta, com tanto que contribua ao fim de suas escandalosas usurpações, usando indistintamente da mentira, e da verdade, da ciência militar, e da traição, e servindo-se de todas as maldades como de coisas indiferentes.

Oh caridade! oh Evangelho! oh entranhas de Jesus Cristo, patentes até àqueles mesmos, que se declaram seus infensissimos inimigos! E podereis vós esperar (perdoai-me este desafogo, esse transporte da minha dor) e podereis vós esperar, que se devesse prégar o perdão, e a paz a quem não foi ultrajado, e ofendido, mas que só a si mesmo se ofendeu, e se ultrajou, ofendendo, e ultrajando sua razão, constrangendo-a a dobrar o pescoço ao jugo férreo das leis, e da tirania de um partido, que o precipita em mil erros, que o contamina com mil culpas? Mas de outra parte são tão fortes as razões contrárias, que vos tenho declarado, e tão medonho, e abominável se mostra por todos os lados o brutal aspecto do espírito de partido, que se à sua vista vós me dissésseis que o não quereis abandonar para sempre, eu o não acreditaria; e tenho por coisa firmíssima, que ajudando-vos Deus, que é um Deus da verdade, e da paz, o espulséreis de vosso coração, se nele lhe tendes dado entrada, ou que lhe fechareis para sempre as portas, e vos não deixareis contaminar de seus hálitos pestífero.

(continuação, VI parte)

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