23/05/15

REFUTAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DOS PEDREIROS ILUMINADOS (II)

(continuação do I Cap.)

Capítulo II
Paralelo da Religião de Epicuro Com a dos Iluminados

Foi moda no século das revoluções espalhar nomes em lugar de coisas, e inculcar péssimas coisas com especiosos nomes. Fala em Religião Epicuro, fala em Religião o Iluminado, e Religião pura, e perfeita. Mas que entende um, e outro, que toma pela palavra Religião? Acaso [foi] o que entenderam os outros Filósofos, Príncipes, magistrados, e Povos do Mundo? Não por certo! Tal é em qualquer indivíduo a Religião, que é a ideia que forma da Divindade, e da humanidade. O homem, ainda depois da morte corporal, sujeito ao Império de Deus; Deus, Legislador Supremo, e distribuidor da felicidade, e da miséria do homem; eis aqui as bases em que se estabelece, e levanta a importância, e majestade da Religião. Ritos diferentes, diferentes sacrifícios, e também diferentes formas, e caracteres da Divindade, ou suposta, ou suspeitada, ou fingida, segundo o capricho dos homens, (ainda que todas as nações existam concordes nisto, que vem a ser, no conhecimento de alguma Divindade dominante, dispensadora dos bens, e dos males), dão a conhecer que o homem naturalmente quer respeitar, e obedecer a um supremo Nome. Nem outra coisa queriam dizer os raios de Jove, as frechas de Apolo, as espigas de Ceres, o Tataro, e o Elísio. Que Deus indolente, e nulo se julgou digno de Templos, e de Altares?

Epicuro
Nós vamos ver qual seja a ideia do homem na Filosofia de Epicuro, e do Iluminado. O homem dizem um e outro, não é mais que um composto de simples matéria, que todo se esvai, e acaba na morte, e por isto izento, e livre de qualquer Religião, porque só vive circunscripto, e limitado só à vida presente. nada resta depois disto à Religião; porque tanto Epicuro, como o Iluminado, fazem também a vida actual independente da Religião pela estranha ideia que nos dão da Divindade. Um Deus de quem se não pode temer, nem esperar coisa alguma nem enquanto dura a vida, nem depois de finalizar a vida. eis aqui o grande objecto da Religião de Epicuro, e do Iluminado.

Enquanto à ideia de Deus, deve observar-se entre Epicuro, e o Iluminado a maior diversidade, e ao mesmo tempo a mais exacta semelhança. Os Deuses de Atenas, não eram os Deuses de Epicuro; exteriormente os honrava, mas dentro de seu coração os escarnecia; carácter que em Céneca repreendeu Santo Agostinho: "colebat, quod reprehendebat". Quais eram pois os Deuses que Epicuro desconhecia? Uma feira de Entes, sonhados por ele: Monógramos, que quer dizer Lineares, figurados, mas não visíveis, que tinham, não corpo, mas quase corpo, não sangue, mas quase sangue, desterrados para sempre entre mundo e mundo nos espaços imaginários. Um Aristófones não podia pôr em cena mais ridiculamente as Divindades da Grécia, nem Luciano os podia mais claramente expor ao escárnio, e ludibrio dos homens! E Epicuro, o Filósofo Epicuro, profere, e dogmatiza tais despropósitos? Parece que, senão delirava, por certo zombava dos Deuses e dos homens!

Confesso que o Iluminado vai muito longe destas extravagâncias, incompactíveis por certo com o decoro filosófico da nossa idade. Ainda os de mais ardimento, e os que não fazem pública profissão de Ateus, falam do Ente Supremo como aquela dignidade, que lhes prescreve, não só a mais sábia Filosofia, mas a mesma Profecia, e Evangélica Sapiência. Ente Soberano, e único, eterno, imenso, infinito, perfeitíssimo, e em si mesmo bem-aventurado; tal é o quadro, ou ideia de um Deus, que quase todos os Iluminados nos apresentam, e nisto há entre eles, e Epicuro uma palmar diversidade.
Passemos à semelhança: Que fazem os deuses de Epicuro a respeito dos homens? Nada. O seu primeiro princípio é este: Eximirem-se de todos os cuidados numa perfeita, e absoluta indolência. Encerram-se em sua habitação, quietos, tranquilos, bem-aventurados no seio de um ócio eterno. Ocupação na verdade extravagante, mas muito digna de tais divindades!

Ora perguntemos aos Iluminados, que faça, e em que se ocupe a nosso respeito esse deus, que eles conhecem tão grande, e tão perfeito? Dita algumas Leis? Promete algum bem a quem o honra, e lhe obedece? Ameaça algum castigo a quem lhe for refractário, e rebelde? Não me digam que a mesma dignidade divina é Lei para todos, e que a razão, e a consciência do homem remunera o homem com a sua aprovação, e o castiga com seus remorsos. Vãos subterfúgios! Não, meus Senhores, não é isto o que eu aqui pergunto. Pergunto-vos se o vosso deus vos intime expressamente algum preceito, e vos prometa algum prémio, que possa galardoar vossas acções virtuosas? "Ah!", exclamais vós enfaticamente, "não convêm aos Supremo Ente abaixar tanto os olhos a coisas tão vis, como são as acções humanas! Porventura é coisa própria de um grande Monarca atender aos movimentos de um pequeno insecto? É coisa indigna de Deus o homem, e quanto diz respeito, e se refere ao homem." Entendo o que se me quer dizer: Deus, conforme a opinião de Epicuro, nem tem, nem emprega uma providência individual. É grande, é eterno, mas tão ocioso a respeito do homem, como os deuses ridículos de Epicuro; com esta diferença, que os deuses de Epicuro nada fazem por motivo de sua ociosidade, o vosso nada faz, por motivo de sua grandeza; mas em nada fazerem são perfeitamente semelhantes. E, se tal é a Divindade dos Iluminados, qual será a Religião? Porventura uma coisa grave, e séria que os obrigue, e que os interesse? Nada disto. Se desta iluminada Religião se desse ao vulgo uma ideia clara, diria o vulgo que era uma coisa que o não fazia, nem quente, nem frio, porque a Religião é toda para Deus, e de Deus tira, e tem toda a sua força, e autoridade. Ora, se deus anda faz, e nada exige de mim, que tem comigo, ou que tenho eu com a Religião? "Não", diz Epicuro, e com ele os Iluminados, "uma coisa que por si é excelente obriga à veneração. E que coisa mais excelente que Deus? Ora toda a Religião consiste na veneração, e no culto que lhe é inseparável." Mas tudo isto é um equívoco, e um miserável equívoco. Este dito dos Iluminados está bem na boca de quem tem de Deus uma bem diferente ideia; porém a que se reduz esta veneração, e este culto nos Iluminados? A uma estéril, ainda que necessária admiração, ou quanto muito a uma homenagem inteiramente arbitrária, qual se consagra à grande alma de Sócrates, ou de Epaminondas; homenagem tão inútil a quem a consagra, como inocente a quem a nega; porque, torno a dizer, de quem se exige este culto? Que proveito, ou que dano causa a quem o dá, ou a quem o nega? Respondam, meus Senhores; eu honro esta divina excelência, resulta-me disto algum bem? Nenhum. Logo, eu a venero, e acato em vão. E se eu a ofendo, resulta-me disto algum mal? Nem um. Logo impunemente a ofendo. Deste princípio, tão visto pelos factos no Iluminismo, tirou Tertúliano esta justa, e assizada consequência: Negat Deum imendum, itaque libera sunt illis omnia, et soluta. Oh! Que condescendente Divindade! Oh! Que Religião tão cómoda!

Tornemos a considerar a coisa de seu princípio: uma humanidade, que é toda material, e que está fora do alcance de todos os tiros do Céu; uma Divindade, que por cómodo seu, ou por decoro o não dá o mais pequeno sinal de vida; que, se te volveres a ela, não te olha, se lhe pedires alguma coisa, não te escuta, se a adorares, não to agradece, se a ofenderes, não se recente; que, se fores todo proibida de, não te premeia; se fores doto iniquidade, não se ofende, nem te castiga; tão indiferente para tudo, como seria uma estátua; venerar esta divindade, e venerá-la a teu sabor, e de tal maneira, que a podes francamente ofender sem lei, sem dependência, sem utilidade, sem esperança, sem temor: e é esta a coisa mais importante, mais tremenda, mais augusta, e sacrosanta que tem havido, e há entre os homens, a Religião? Mas digam-me os Iluminados, é isto ilusão, ou Religião? Ela nem vos obriga, nem vos toca, é como senão fosse, e para o dizer melhor, é um equivalente da irreligião. Seja juiz aquele mesmo que procurou lavar-se da mancha de impiedade, o Epicureo Lucrécio Poeta, sempre em contradição consigo mesmo, porém mais sincero que um Iluminado. Louva encarecidamente o seu Epicuro; e porque? Porque ousou primeiro levanta os olhos contra o Céu:

Primus Graius homemo mortales tolere contra
Est occulos ausus,
etc.

O que em sua linguagem nada mais quer dizer, que ser destruidor da Religião; e Cícero com filosófica gravidade, e fraqueza, melhor nos aclarou este mistério: "Xerxes com os braços da sua soldadesca, (diz Cícero, comparando o Conquistador com o Filósofo), Xerxes com os braços da sua soldadesca, e Epicuro com as máquinas da sua doutrina, conspiram para a ruína da Religião; só com esta diferença, Xerxes com a cara descoberta, atacou o corpo da Religião, isto é, o culto exterior, e Epicuro, com o rebuço da Filosofia, atacou o espírito da mesma Religião, destruindo seus princípios, tirando todo o freio à humanidade, e tornando ociosa e improvida a Divindade."

E vossas máquinas, ó Iluminados, não são as mesmas de que se serviu Epicuro? Os vossos princípios não são os mesmos? mas entre vós, e Epicuro há uma estranha, e notável diferença. Epicuro deixou ao menos intactos, e sustentou, o culto externo, os Templos, os altares, adorações, oblações, sacrifícios.... Vós, pelo contrário, unicamente vos limitais ao culto interior, isto é, um culto de que Deus não cura, e que nada importa ao homem. E à vista disto, que nome vos darei? Chamar-vos-hei Epicuros, ou Xerxes? Sereis uma, e outra coisa, já que com vossos dogmas, e princípios haveis destruído, ou atacado o corpo, e o espírito da Religião; e se persistis em querer o nome da Religião, seja assim, mas confessai que a vossa Religião é a coisa mais vã que tem o mundo: confessai que uma semelhante Religião se acomodasse maravilhosamente com a impiedade, e que nada mais é, que uma espécie de Ateísmo, e Ateísmo dissimulado, ou mitigado; faz ressoar altamente o santo nome de Deus, mas é Ateísmo; porque o Deus, cujo nome proferis, é para vós como se não fosse, porque de nada cura, e nada estende a sua providência: e quão pequena é a diferença entre o fazer nada, e o não ser! E tal é a diferença que passa entre o vosso Deísmo e o Ateísmo; porque tem, e goza de todos os seus privilégios. Ou não exista um Deus, ou nada faça, é para vós o mesmo, igual liberdade, e igual soltura: Negat Deum imendum, libera sunt omnia, et soluta: esta era a intenção daqueles ímpios de que vos disse falara a Escritura - Dissolver-se-há, acabará nossa alma como se dissipa o fumo, e o Ente Supremo não atenderá por isto: Spiritus diffundetur; non videbit Dominus: e tão seguros como os Ateus que diziam: "Non est Deus. E atrevem-se os Pedreiros-livres a dizer: "Somo religiosos, somos até Cristãos". E gritam estrepidosamente: "Impostura, inveja, e fanatismo são os nossos perseguidores." Assim bradam, se se lhes diz que seus abominandos princípios são anti-Cristãos. Ensinou acaso Jesus Cristo o que eles ensinam? É porventura o Evangelho conforme à sua doutrina? Creio que os Iluminadíssimos Pedreiros são do jaez, e estôfa daqueles de quem fala Santo Agostinho, que se envergonhavam de se chamarem Cristãos, para lhe não chamarem Platónicos, e Zenonitas: Cujus superbia nominis erubescunt esse Christiani. Neste afectado Cristianismo, nem Zeno, nem Platão descobririam seus mais ligeiros liniamentos, e feições. A Divindade, que estes Filósofos criam, não existia tão descuidada das coisas humanas, nem idearam jamais a humanidade a um mesmo tempo tão livre, e tão abjecta. Como podem ser Cristãos os que não conservam, nem os primeiros elementos da Religião natural, e filosófica? Querem dizer-se Cristãos para desfigurarem o Cristianismo à sombra deste nome, e cravarem-lhe mais profundamente o punhal que escondem.

(continuação, III cap.)

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