14/07/16

O PUNHAL DOS CORCUNDAS Nº 31 (I)

O PUNHAL DOS CORCUNDAS

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Nº. 31
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Ostendam gentibus nuditatem tuam

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O Axioma dos Pedreiros, Ou o Povo Soberano

Pois também eu, rançoso Teólogo, ousarei profanar o santuário impenetrável das Questões Políticas! Não admira, porque sou membro de uma Faculdade, que no sentir do Jurisperito de Setúbal foi sempre avessa de Ideias Liberais; e quando eu me pretendesse justificar da nota de ousadia, que fácil empresa tomava, se folheando o repertório geral das Sandices, fosse dar com a extraordinária, e verdadeiramente feia asserção de um soldado, que por ignorar o Direito Canónico, se julgou hábil para dissertar sobre matérias Eclesiásticas!! Pois eu não terei a mesma autoridade para me introduzir onde me não chamam, qual tiveram esses Mordomos por devoção, que se apelidaram Línguas da Magistratura, da Nobreza, do Comércio, do Corpo Militar, e do próprio Clero!! Não, Senhor, eu tenho mais jus de tratar a questão do que os tais enxertados Procuradores de quem não sabia de tal honra. A questão do Povo Soberano é mais que política; é também religiosa, e como tal foi tratada há mais de cem anos pelo maior dos Teólogos modernos. Este Sansão literário, antes de existirem Rousseau, Pradt, e Constants, deu com todos os sofismas destes heróis em terra; e faz dó que o género humano fechasse os olhos à bemfazeja luz, que desde o século XVII começava a apontar-lhe a verdadeira origem de seus males presentes e futuros [portanto, andam descuidados aqueles que nestes séculos só olharam o que disseram e fizeram os desencaminhados, e não ouvem o que foi dito pelos ortodoxos da época, preferindo recorrer aos ortodoxos incompletos muito posteriores]. Ora pois esta questão de alto cothurno há de ser tratada com vagar e madureza, como está pedindo a sua incontestável gravidade, pois uma vez que se cortem as verdadeiras raízes da árvore da liberdade, que remédio terá esta pobre senão esmorecer, definhar-se, e secar de todo? Começarei por alguns preliminares da questão, bem entendido que eu não falo a homens perversos e obdurados, falo somente aos que se deixaram iludir e arrastar daquela verdadinha, e que por felicidade são ainda Católicos.


Primeira proposição

"O respeito, a fidelidade, e a obediência que se devem aos Reis nunca se devem alterar por motivo nenhum." Quer isto dizer que se devem respeitar e servir constantemente, sejam eles como forem, bons ou maus. "Obedecei a vossos senhores, não somente quando eles são bons e moderados, mas também quando são ásperos e desabridos." (Epístola II de S. Pedro cap. 2, v. 18)

Periga o Estado, e o sossego público não tem nada de firme, se é permitido fazer levantamentos, por qualquer motivo que seja, contra os Príncipes.

A sagrada Unção está sobre eles, e o alto Ministério, que eles exercitam em nome de Deus, os preserva de todo o insulto.

Achamos David não só refusando atentar contra a vida de Saúl, mas tremendo por se ter atrevido a cortar-lhe a ponta do seu vestido, ainda que isto fosse para bom fim. "Deus me livre de eu levantar a minha mão contra o Unigénito do Senhor, e o coração de David ficou magoado, porque tinha cortado a ponta da cota d'armas de Saúl." (I Reis, c. 24, v. 6,7)

As palavras de Sto. Agostinho sobre esta passagem são notáveis. "Vós me argumentais (diz ele a Petiliano, Bispo Donatista) que aquele que não é inocente, não pode ter santidade; eu vos pergunto: se o Rei Saul não tinha a santidade do seu Sacramento e da Unção Real, que é o que causava nele veneração a David? Foi por causa desta Unção santa e sagrada que o honrou durante a vida; e lhe vingou a sua morte. E seu coração magoado tremeu, quando ele cortou a ponta do vestido deste Rei injusto. Estais vendo pois que Saúl, apesar de não ter inocência, não deixava de ter santidade, não a santidade de costumes, porém a santidade do Sacramento divino, que é santo ainda nos homens de maus costumes." (L. 2 Lit. 148 contra Petil.)

Chama-lhe Sacramento de Unção Real, ou porque ele dá este nome a todas as cerimónias sagradas, como é uso de todos os Padres, ou porque em particular a Unção Real dos Reis no povo antigo era um sinal sagrado instituído por Deus, para os fazer capazes do seu cargo, e para figurar a própria Unção de Jesus Cristo.

O que é todavia de mais importante é que Sto. Agostinho reconhece, fundando-se na Escritura, uma santidade inerente ao Carácter Real, que não pode ser apagado por algum crime.

Foi, diz ele, esta santidade, a que David, injustamente perseguido de morte por Saúl, David sagrado para lhe suceder, assim mesmo respeitou em um Príncipe reprovado por Deus, porque ele sabia que só tocava a Deus fazer justiça nos Príncipes, e aos homens o respeitarem o Príncipe, em quanto Deus o quiser conservar.

Por isso nós vemos que Samuel, depois de ter declarado a Saúl que Deus o tinha rejeitado, não deixa de o venerar. Disse-lhe Saúl: "Eu fiz mal; rogo-te porém que tomes sobre ti o meu pecado, e vás comigo para adorarmos o Senhor." Samuel lhe respondeu: "Eu não irei contigo porque rejeitaste a palavra do Senhor, e o Senhor também te há rejeitado, para que não sejas Rei de Israel. Samuel voltou as costas para se retirar, e Saúl pegou-lhe pela ponta do manto, que se rasgou. Samuel lhe disse "O Senhor separou de ti o Reino de Israel, e o deu ao teu próximo, que é melhor do que tu. Deus, poderoso e vitorioso, não se há de desdizer nunca, pois não é como um homem para se arrepender dos seus desígnios." Respondeu Saúl: "Pequei, honrai-me porém disante dos Anciãos do meu povo, e diante de todo o Israel, e voltai comigo, a fim de que eu adore o Senhor teu Deus." (I Reis, c. 15 v. 24 a 31)

Não se pode dizer mais claramente a um Príncipe que está reprovado; mas Samuel por fim se deixa comover, e consente em honrar Saúl diante dos Grandes, e diante dos povo, mostrando-nos por este exemplo que o bem público não permite que se exponha um Soberano ao desprezo.

Roboão trata muito mal o povo; e contudo a revolta de Jeroboão, e das dez tribos que o seguiram, ainda que permitida por Deus em castigo dos pecados de Salomão, não deixa de ser detestada em toda a Escritura, onde se declara: "Que voltando-se contra a casa de David, eles se revoltavam contra o Reino do Senhor, que ele possui pelos descendentes de David." ( II [?] c. 13, v. 5 a 8)

Todos os Profetas que viveram no governo dos maus Reis, Elias, Eliseu no tempo de Acab, e Jesabel em Israel; Isaias no tempo de Acaz, e Manessés; Jeremias no tempo de Joaquim, de Jeconias, e de Sedecias; numa palavra todos os Profetas no governo de tantos Reis ímpios e malvados, nunca falharam na obediência, nem inspiraram à rebelia, mas sempre à submissão e respeito.

Ouvimos Jeremias, depois da ruína de Jerusalém, e da total ruína do trono dos Reis de Judá, falar ainda com um profundo respeito de seu Rei Sedecias: "O Ungido do Senhor, que nós considerávamos como se fosse nossa própria respiração, foi prezo, por nossos pecados, quando nós lhe dizíamos: Viveremos à vossa sombra entre os gentios." (Lament. c. 4, v. 20)

Os bons vassalos não se julgavam dispensados do respeito que deviam ao seu Rei, nem depois que o seu Reino estava destruído, e que ele próprio foi levado cativo com todo o seu povo. Respeitavam ali nos ferros, e depois da queda do trono, o carácter sagrado da autoridade Real.

(a continuar)

2 comentários:

Unknown disse...

A quem é que Padre Agostinho de Macedo se refere como o maior teólogo moderno?

anónimo disse...

Caro Telmo Pereira,

o autor é Fr. Fortunato de S. Boaventura. Ao fundo do artigo diz "a continuar".

Se procurar, tem esta obra na internet.

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