22/08/16

O PUNHAL DOS CORCUNDAS Nº 20 (II)

(continuação da I parte)

O mais famosos e difamado inquisidor: Tomás de Torquemada
(na verdade, um homem quase santo que tanto bem fez)
Ainda não contente a fúria dos liberais, decretou a solene demolição dos cárceres (parece que lhes adivinhava o coração  o perigo iminente de serem ainda os seus povoadores) e para a execução desta providência foi necessário que se gastassem avultadas somas, e, o que é ainda mais próprio deste século de extravagâncias, a sala principal do S. Ofício de Évora destinou-se, valha a verdade, para local de sociedades maçónicas... Tanto mudam os homens e as coisas!!! Nada mais fácil que tapar de uma vez a boca aos inimigos do S. Ofício. Muito embora não penetrem os indiferentistas modernos a justíssima causa desse impenetrável e misterioso segredo, que até certo ponto se guarda nos processos. Quando os negócios da Fé eram os que mais doíam aos Portugueses, não se estranhava coisa alguma destas, e os bons Católicos perdoavam de boamente ao S. Ofício que ele ocultasse muito do que só poderia irritar e escandalizar os fiéis. Depois que começou a grassar (até nas próprias classes que deviam sobressair em zelo e actividade para tudo que fosse promover a glória do Cristianismo) essa maldita indiferença para tudo que é sobrenatural e Divino, começaram também de estranhar-se os rigores do S. Ofício, que teve de abrandá-los, e conformar-se nesta parte às opiniões do século... O grito de usurpação dos direitos Episcopais é agora o mais indiscreto e menos atendível. Já mostrou a experiência que os Excelentíssimos Ordinários carecem da maior parte da força que acompanhava todos os procedimentos do S. Ofício. Saíram impressos nas cidades episcopais alguns escritos obscenos, e ímpios, e não vi que saíssem Pastorais a desviarem o rebanho dos pastos venenosos; o que deve cortar pela raiz o ciume de alguns Bispos que se lastimavam dessa pretendida usurpação, que era mais um favor, e um auxílio poderoso, que sustentava o ministério Episcopal, do que um atentado contra os seus inauferáveis direitos, nem os filósofos do tempo adularam os Bispos, e trataram de lhes agravar a ferida, senão com o doloso intuito de enervarem o poder do S. Ofício, que era o único de que mais se temiam, e que mais obstava aos progressos da Maçonaria. Era tão poderosa a ascendência do Tribunal sobre os malfadados vingadores de Adomirão, que assim mesmo debilitado, enfraquecido, e posto numa certa nulidade, tinha ainda forças de sobejo para lhes estorvar as suas reuniões, e impedir que se metessem a recrutar impunemente, e que fazendo gala do sambenito (o verdadeiro ficava-lhes a morrer!) preparassem, e endereçassem as loges dos seus paninhos envernizados, de suas mitras, esquadrias, e mais insígnias e utensílios de lata etc., etc. etc.

Doces despojos
Tão bem logrados
Em quanto Deus,
Enquanto os fados
O consentiam!

Ainda bem que na invenção e descoberta da Farraparia mçónica leu toda a cidade de Coimbra duas verdades mui importantes, e da maior consequência para o futuro. 1ª A existência dos Pedreiros livres, que era impugnada por certos heróis, aos quais ou faltava o senso comum, ou sobejava a malícia para encobrirem deste modo os seus caríssimos irmãos. 2ª A urgente necessidade da imediata restituição do tribunal do S. Ofício, o único que pode fazer uma guerra bem sucedidas ao Maçonismo, que só vigiado de perto, contrariado em seus planos, e ameaçado de jazer, ou jazendo de facto nos cárceres do S. Ofício, é que poderá tomar juízo. Entrementes para que o tal Sr. Maçonismo, tão presunçoso como depravado, não cuide que só contei histórias e disse algumas chalaças, e que ele esgotou a matéria, e fez um papel brilhantíssimo no Salão das Necessidades, farei um par de observações sobre a estrepitosa Sessão em que foi abolido o Tribunal da Fé, e caminharei, depois senão a uma apologia formal, que não é agora do meu intento, pelo menos a um ensaio de apologia, que não será de todo inútil para as crianças que a lerem, e poderá consolar os bons Portugueses, para os quais já tarda muito a desejada restituição de um Tribunal, a quem devemos o ser Católicos; pois que seria de nós se as heresias de Luterano e Calvino tivessem penetrado e lavrado impunemente neste Reino!!

Erros, contradições, e sandices dos trasloucados e furibundos Preopinantes, quando fizeram abolir o Tribunal da Fé...

Se ao tempo em que eu via sair de Coimbra no meio de Verdiais e homens de vara um carro atulhado de estudantes, ou vadios, ou facciosos, ou amadores de novidades prejudiciais à ordem pública, me dissesse algum dos circunstantes que aplaudiam esta rigorosa, mas indispensável medida do Vice-Reitor José Monteiro da Rocha: "Aquele de horrenda catadura que vês estendido na carreta em ar meditabundo, propriedade de ciência que faz objecto de seus estudos; e assim com a fisionomia de cabeça de motim, ou chefe de seita... esse mesmo há de governar ainda os Portugueses, há de ser ouvido pelos maiores sábios da Nação como oráculo, e para te dizer de uma vez até onde chegará a sua poderosa influência, há de extinguir o Tribunal do Santo Ofício, e ninguém abrirá bico diante dele para o impugnar ou contradizer..." eu pedia a quem tal me dissesse que ninguém mais o ouvisse, temendo que o remetessem de envolta com os heróis do carro, mas para outro destino, a saber, Casa de Oraters... A que chegámos no tempo constitucional!!! Tudo isto vimos, e o vimos calados e tranquilos!!! Não quero agora trabalhar os nossos Ixiões, a quem as nuvens parecerão Deusas... Apareça em cena o novo Fayel ou Hamlet, o pavoroso Diário de Côrtes nº 42, que nos regalou as entranhas com os debates ou rebates falsos da sessão de 26 de Março de 1821, e vejamos como ele fica depois da esfrega Histórico-crítica, que lhe tenho preparado.

Texto

Esta bula (a da instituição do Tribunal da Fé) foi reescrita por agrado pelo Rei D. João III, sem saber que recebia com ela a infâmia e a desgraça deste Reino.

Censura e comentário

Bem sei, meu Português à força (vai o C plicado, se o quiseres sem ela, farás o que te parecer melhor) que essa famigerada bula não poderia nunca ser ouvida com agrado nos Congressos de Satanás, Belzebu, Astaroth, Asmedeu, e outros que tais... porém um Rei Católico e verdadeiro Pai dos seus vassalos, (não tenhas medo a este papão) e verdadeiro Pai dos seus vassalos, muito bem inteirado do que sucedera em Lisboa no tempo do seu Augusto Pai, e de quanto era inflamável o zelo dos Portugueses em tudo o que respeitava à santa Religião dos seus maiores; e vendo-se por outra parte ameaçado das heresias de Lutero e Calvino, que só lhe traziam a perdição eterna de seus vassalos, assentou que era melhor obstar aos males em seu princípio, que ter de chorar dentro em poucos anos outra matança e destruição de seus filhos, muito acima da que se perpetrara em Lisboa debaixo de pretextos de Judaísmo... Por isso alcançou, apesar de grandes obstáculos que lhe foram suscitados na Cúria Romana, a bula da instituição do Tribunal, que Santo Ofício já o havia neste Reino, e os erros e heresias consumavam declarar-se aos Inquisidores gerais, que foram tirados das Ordens de S. Francisco e de S. Domingos. Soube ElRei perfeitamente o que recebia, e soube que afastava dos seus Reinos, quanto nele era, a infâmia de ser respeito de heresia, e a desgraça de correr após as novidades do século e de perecer eternamente... Ora tudo isto é uma verdade inquestionável; mas era tal o predomínio das opiniões filosóficas neste Reino, que a erecção do Tribunal do Santo Ofício costumava ser um grande apuro em que se viam os Pregadores nas exéquias deste Soberano, que é de tarifa celebrarem-se anualmente pela Universidade de Coimbra... Não o para mim, que em 1819 tirei desse mesmo princípio a maior glória do Restaurador da Academia, e de bom grado quis passar por intolerante e fanático, ou por insecto asqueroso, imundo resto do Tribunal de sangue, como depois me chamou certo escritor liberalismo.

Texto

O primeiro que teve a desgraça de ser Inquisidor Geral foi um irmão de ElRei, foi o Cardeal Henrique.

Censura e comentário

Mente, e comete um erro de palmatória... E são estes os que profundavam as matérias, e levavam o recadinho estudado!!! O primeiro Inquisidor geral foi D. Fr. Diogo da Silva, Bispo de Septa ou Ceuta, o Confessor d'ElRei, como se vê da bula de instituição, que vem a pág. 713 do tomo 2º das Provas da História Genealógica, e só passados bons três anos é que entrou para Inquisidor geral o Cardeal Infante D. Henrique, por ter passado para Arcebispo de Braga o primeiro Inquisidor mor, que assim lhe chamavam neste tempo.

Texto

Era lícito a toda a pessoa, por mais perversa que fosse, ser denunciante ou acusador, e as acusações eram recebidas apesar da incoerência das testemunhas.

Censura e comentário

Já notei que o último Regimento do Tribunal é cheio de circunspecção e cautelas a este propósito, e como tal merecê os forçados elogios da própria sabedoria do século. Não tenho à mão a celebérrima narrativa da perseguição, ou o quer que é, do Irmão Hipólito José da Costa, onde se lêem por inteiro os dois últimos Regimentos; só me foi possível examinar o que foi dado pelo Inquisidor geral D. Pedro de Castilho, o que é tanto melhor para o meu intento, por ser o tachado na própria sessão de Código horrível, Código de sangue, etc.. No capitulo 9 fol. 8 v. lemos o seguinte "Por uma só testemunha se não precederá a prisão ordinariamente, salvo quando parecer aos Inquisidores que é caso para isso, e a testemunha é de crédito, e que fala verdade..." Já no capítulo 3º fol. 8 se tinha advertido que não se procedesse fogosa e precipitadamente; e no capítulo 5º se recomendava o seguinte: "Assim mesmo se olhará muito a qualidade de testemunhas, e o crédito que se lhe deve dar, segundo a qualidade do caso e da pessoa, e os Inquisidores farão diligência sobre o crédito que devem dar às testemunhas, antes que procedam à prisão, como em negócio de tanta importância se requer, e o mesmo farão em todas as mais testemunhas que perguntarem, etc."

Ora este Regimento foi impresso em 1613, e já nesse tempo era fácil destruir as objecções do homem do carro.

Texto

Jazia o prezo num espaço menor que aquele onde se põem os mortos. (Aqui entraram de chusma as polés, cavaletes, ferros em brasa, etc. etc. etc).

Censura e comentário

Já o apanhei onde o queria ver, para o zurzir à minha vontade. As prisões do Santo Ofício eram mais escuras que apertadas, e se havia lá segredos, calabouços e prisões subterrâneas, imitava lá segredos, calabouços e prisões subterrâneas, imitava nessa parte o que ainda não reprovaram os Tribunais cívico quando se trata de crimes de traição ou lesa Majestade humana... prisões mais estreitas que o jazigo dos mortos, ah! que bem cabiam neste rasgo de eloquência Cicerónica essas lágrimas de pura sensibilidade, com que outro ainda mais conspícuo arengador devia molhar daí a poucos minutos o sagrado recinto!!! Eu não tive a curiosidade de ver os cárceres do Santo Ofício de Coimbra, antes me escandalizei muito de que várias pessoas, e nomeadamente alguns Sacerdotes seculares e regulares, acudissem a uma revista ou exame, que era um dos principais triunfos da Padroeira; mas sei de pessoas que examinaram os cárceres sem prevenção, e que os não vieram pelo microscópio da libertinagem e da impiedade, que eles nem ao longe se parecem com o termo de comparação, que lhes assinou o valente orador que vou refutando... No que toca aos horrorosos tratos de polés e cavaletes, etc etc., serei um pouco mais extenso... A moderação, e quase extinção de tortura, deveu-se em tempos mais antigos à em tudo bemfazeja influência do Cristianismo, e o que se tem escrito de melhor neste assunto foi roubado das obras de Santo Agostinho, sem que até agora tenham confessado a obrigação em que está o Género humano ao eruditíssimo autor dos livros imortais De Civitate Dei. Apesar disto, ficou pertencendo esta glória ao Marques de Becaria, apregoado em todos os cantos da Europa, e levado até às nuvens por ter feito acabar esses opróbrios da humanidade... Deu-me agora na vontade referir certas anedotas sobre o livro e carácter de tal Marquês, para vermos a coerência com que procedem em tudo os Filósofos modernos...

Depois da condenação do réu cala. que deu tamanho brado na França e na Europa, lembraram-se os Enciclopedistas que era uma boa ocasião de assoalhar alguns princípios que ainda se ensinavam às ocultas, e para este fim escreveram a um Frade Barnabita de Milão, que era Matemático e sócio da irmandade, pedindo-lhe que fizesse disparar a artilharia grossa Italiana sobre o rigor das penas, e sobre a tolerância, que em bom Português quer dizer guerra ao Trono, guerra ao Altar, e que os irmãos de Paris teriam cuidado de sustentar o crédito da Obrinha, e fazê-la voar até aos últimos confins da terra... A carta era de Mr. Condorcet (que herói!!!), e foi linda penetrante os sócios da Assembleia denominada de Café... id. est. Loge - Fortaleza, Loge - Regeneração, ou como outras da mesma farinha. Todos escolheram os homens, e ninguém aceitava a comissão filosófica, que estava em perigo de falhar, quando um Filósofo medíocre, o Marquês de Beccaria, com grande pasmo do auditório, que o reconhecia por incapaz de tamanha empresa, disse que a aceitava. Compôs o livro dos Delitos e penas, mandou-o à Confraria Parisiense, onde era esperado com ânsia... porém Mr. de Alambert enojou-se tanto de ler, que o não pôde levar ao fim. Assentou-se que convinha refundi-lo e ataviá-lo à francesa, e foi o Abade Morelet quem se encarregou do novo trabalho, que apenas saiu a lume, foi comentado por Voltaire, premiado extraordinariamente pela Academia de Berne, chamado o Suplemento do Espírito das Leis, e a quinta essência da Jurisprudência criminal, quando o melhor que ele contém foi apanhado da Utopia de Tomás Moro, e do próprio Montesquieu, que já fizera a mesma colheita nas obras de João Bodino. Disse pois o que basta e sobeja quanto ao livro; pintarei uma palavra no tocante ao Autor. Adoeceu-lhe a Marquesa sua mulher em Tourano, nas terras do Conde Calderari, amigo do Marquês, que lhe mandou para o verem o Doutor Moscati, e o Médico. D. Félix Mainoni, os quais, ao passarem no vale Marignano, foram incestidos e saqueados por três salteadores, cujo capitão se chamava Sartorelo... Requereram os tais Doutores ao Marquês uma indemnização desta perda, e conseguintemente o Marquês pôs toda a diligência para serem presos os criminosos, e com efeito o capitão Sartelo caiu nas mãos da justiça, mas negava tudo a pé junto, e as testemunhas não estavam certas das feições dos salteadores, o que punha o Juízes em grande hesitação, sem atinarem o modo de satisfazerem o Marquês... Foi ele próprio que sugeriu o expediente para os desenredar daquela perplexidade. E qual seria? Nada menos que a tortura!!! O que é tanto mais para estranhar, quanto é certo que na Loimbardia só em casos extraordinários a infligiam!! Segue-se pois de duas uma, ou o Mr. Beccaria, Professor de direito humano, obrou mal quando impugnava a tortura, ou fez ainda pior quando a inculcou aos Juízes no sobredito caso. Enfim nada é tão ordinário nesta casta de gente, como veremos um Frederico II curando nos seus soldados a mania do suicídio pela assistência às leituras do Evangelho, um Voltaire trincando cartas de excomunhão do Cura da sua freguesia para empecer a destruição das árvores da sua mata de Ferney, e um Dufriche Valeré (se bem me lembro) voltando de morte na causa de Luís XVI, depois de ter defendido nas suas obras que a pena de morte era um atentado contra os direitos do homem, etc. etc. etc.. A Inquisição, tornando agora ao ponto essencial, à muito que não usava de polés, nem cavaletes, que só existiam mais para incutirem susto do que para se usarem; e um dos tais Preopinantes, que podia falar com sobejo conhecimento de causa, não duvidou afirmar que a Inquisição se tinha amoldado às opiniões do século, que já não era tão rigorosa como dantes: logo para que era temer sevícias já inteiramente desusadas, para que era aborrecer uma instituição que nas matérias penais caminhava a par das luzes do século? Responda-o.

Texto

Ainda depois do reinado de ElRei D. José muito homens foram vítimas dele. Ainda em nossos tempos vimos sofrer muitos beneméritos deste país, antes da famosa setembrizada. Do texto se conclui que temiam ver excitados novamente os que eles chamavam antigos furores do Tribunal, e por isso o queriam abolindo a ponto de que, sendo possível, queimassem os próprios edifícios, e deitassem as cinzas e ruínas ao mar.

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Eis que chego ao mais fino da questão; e serei mais claro do que nunca. Perseguiu a Inquisição o Lente José Anastácio no Reinado da Senhora D. Maria I ... e assim foi ... mas vejamos se o Tribunal procedeu justa ou injustamente. Ninguém provará que a Inquisição entendesse com aquele Professor em assuntos de Faculdade de Matemática, e debalde quererão os adeptos fazer deste homem perseguido um novo Galileu (já que vem a talho de foice, ou corte de punhal que vem a ser o mesmo, direi este facto da perseguição do Galileu é um dos que andam mais desfigurados na História moderna; e se alguém me saísse ao caminho, que eu levo, então lhe mostraria por documentos de irrefutável crédito que nem a Inquisição de Roma foi cruel, nem o Astrónomo foi tão inocente como se diz vulgarmente, sem exame, e sem averiguação alguma. Tenho armado uns poucos de alçapões aos sábios destas eras, mas infelizmente não saem a campo, o que não admira, porque no seu S. Martinho, no seu bom tempo constitucional, não souberam responder a quem lhes argumentava na forma senão insultando, prendendo, e desterrando). Podia ele se quisesse, e os seus talentos e forças alcançassem tanto, não só igualar, mas exceder o famoso Pedro Nunes, sem que lhe pusessem o menor impedimento; José Anastácio porém excedeu-se em matérias de que não era sabedor, e nas quais não podia ser juiz; dogmatizou contra os principais mistérios da nossa Fé, e para ser mais eficaz o veneno, temperou-o com todas as graças da Poesia, e como enfeitou de lábios dourados a laça em que propinava a moral bebida aos incautos mancebos que o atendiam. Que devia fazer nestes lances o Tribunal do S. Ofício quando reinava uma Princesa verdadeiramente religiosa do Cristianismo ao próprio Soberano que fez erigir o Tribunal da Fé? Muito embora chorassem as musas, as letras, e as ciências; mas foi de absoluta necessidade reprimir os males na sua origem, e só estranhará os aliás pequenos sofrimentos de José Anastácio quem desejar segui-lo na temeridade de escrever contra a fé e bons costumes. Oxalá que o S. Ofício já bastantemente aguilhoado nessas, e outras semelhantes causas, pudesse então bracejar e desenvolver-se na forma que tanto convinha aos interesses da Monarquia!!! Apenas conseguiu represar nas mãos de infames depositários as virulentas, ímpias, e blasfemas cartas de um Português, que em poucas páginas recolheu todo o veneno das Cartas Persanas, Índias, Cabalísticas, etc. etc., etc. Logo porém que o dia 24 de Agosto fez soltar os ventos, e as tempestades de volta com o Dragão Infernal que estivera sopeado mais de seiscentos anos, foram impressas neste Reino!!! As cartas de José Anastácio, venderam-se descaradamente no Porto e em Coimbra, que em Lisboa já seriam velhas, e correram como se fossem novos catecismos da mocidade Portuguesa!! Em vão protestei na Gazeta Universal contra a aparição de mais este fenómeno da impiedade; uma voz fraca, e desconhecida mal se ouvia, quando os próprios que eram obrigados a falar em voz alta, pereciam estátuas! No que pertence aos beneméritos que compareceram no Tribunal do S. Ofício, já toda a Nação conhece admiravelmente de que laia são estes beneméritos, e acompanham-me toda no sentimento de que, assim como levaram meigas e suaves repreensões, não ficassem ai deitados e clausurados! Pois que perdíamos com isso? Teríamos vivido em paz, e não teríamos visto as proezas maçónicas. Já agora que tenho adiantado este certamente, convém levá-lo ao fim, propondo, e desfazendo as objecções dos adversários dos S. Ofício.

Texto

Quem será tão desumano, que não se comova dos gritos de mil e quatrocentas vítimas que foram queimadas, e mais de vinte mil que foram infamadas neste Reino por esse Tribunal povoado de canibais e antropófagos? Somente na Bélgica foram condenados à morte oitenta mil pessoas, quando o feroz Duque de Alba dirigia as operações do Tribunal exterminador, "e quem tomar o pincel vagaroso, mas seguro, de Dominichino, e molhar no sangue que fez derramar em Espanha esse infame Torquemada" (Diário da Côrte - 1º ano, nº42, pág. 356) fará por certo o quadro mais espantoso e abominável.

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Qual é o Tribunal humano, que não tenha abusado de seus poderes, que não tenha excedido os limites de sua competência e de sua jurisdição? Se fôra este um motivo suficiente de sua extinção, quantos deveriam ficar em pé? Tomando porém a coisa por outro lado, quantos ladrões e homicidas terão há duzentos anos a esta parte subido à forca nas duas cidades de Lisboa e Porto? Quem folheasse os registos das sentenças capitais deste Reino acharia mais de mil e quatrocentos; e será este um argumento, porque se devam extinguir desde já os Tribunais que impuseram a pena última? Ora esses mil e quatrocentos, número este que por ventura será exagerado, foram homens relapsos, dogmatizantes, e perturbadores da ordem pública, e por isso a autoridade civil deu as mãos à eclesiástica, para que do rebanho de Jesus Cristo fossem cortadas de uma vez essas ovelhas contagiadas, que o poderiam inficcionar todo, se lhe não acudissem a tempo. Os filósofos de hoje estão muito discordantes da sabedoria cristã, e por isso nem pode haver ajuste de princípios, nem as disputas acabam felizmente. Para eles tudo é político e temporal, e os negócios da Fé são os últimos... Concedem facilmente que uma desatenção, uma palavra injuriosa que se diga ao Rei da terra, é punível, e de bom grado subscreveram a pena de morte, se houver esperança de merecê, de comenda, ou de título... porque enfim querem viver só para este mundo, e talvez não admitiam, nem esperem outro... mas tratando-se de injúrias públicas e atrozes feitas ao Rei dos Céus e da Terra, humanizam-se, mudam de tom, e parecem-lhe delírios de cabeças estouradas, que não contemplam nem sabem dar desconto ao fanatismo dos seus concidadãos; e muito embora se altere o sossego público, se corrompa a mocidade, pereçam almas aos centos, e milhares delas se precipitem no inferno, basta para esses crimes um simples aviso correccional. Não é agora do meu intento defender a severidade das medidas que tomou o Duque de Alba, nem fazer encurtar o número das vítimas que se imputam ao Cardeal Torquemada; devo porém fazer uma advertência mui essencial neste ponto. Quando os Ateus e Pedreiros Livres governam, tudo é santo e justo; façam-se embora centos de pavorosas cenas como a decantada S. Bartolomei, assim era necessário para o bem da sociedade, que usou dos seus direitos, cortando ou expulsando de si os membros podres que a corrompiam danificavam; quando porém governa Carlos IX de França ou Filipe II de Espanha, muito embora os Belgas e os Hugunotes sejam notoriamente uns vassalos rebeldes, uns aleivosos conspiradores, que levantando um Estado dentro do Estado queiram e possuam lugares de segurança e praças fortes, donde renovem a seu salvo, quando houver mais forças, e guerra civil; tudo isto são jogos de crianças a que os Reis devem mostrar uma cara de riso, e subirem com ela ao patíbulo, que lhes anuncia já sem rebuço, e lhes prepara no silêncio das trevas a orgulhosa sabedoria moderna, empunhando a trolha, cingindo a cabeça de mitra, e rodeada de esquadrias, de triângulos, e outros emblemas de suas altíssimas concepções.

Texto

Quem se vale do argumento de se terem evitado neste Reino as funestíssimas dissensões religiosas, que ensanguentaram a França e a Alemanha, recorrer a uma simples invectiva, a uma simples recriminação, como quem diz "tu fazes pior, logo eu não faço mal."

Censura e comentário

Não é por esse modo sofistico e vicioso que nós conduzimos o argumento; porém de outro o mais conforme às regras de uma discussão judiciosa e atilada. Os defeitos e abusos são como inerentes às melhores instituições humanas, e a que tiver menos, tem sobejo direito não para os justificar, mas para exigir que não sejam punidos severamente, quando outros maiores se disfarçam e ficam impunes. Que defeito de argumentação ou de raciocínio cometemos nós, quando protestamos que ElRei D. João III nos livrou desse 24 de Agosto, dia que tão fatal há sido para os Reinos da Europa, e que se ele não instituíra o Tribunal do S. Ofício teríamos chorado antes de 4 de Agosto (e o Agosto sempre em campo!!) de 1578 alguma catástrofe talvez maior que a perda de África? O dia 24 de Agosto pelo computo encarecido dos inimigos da Fé custou à França sessenta mil homens cobardemente assassinados, e pelo computo mais razoável só vinte mil; e daqui se vê que a Inquisição a matar em setenta e nove anos, ou desde a sua instituição (variam estes cálculos na boca dos vários preopinantes; veja-se o lugar citado), apenas chegou a uma vigésima parte, ou sexagésima, dos que foram trucidados na França em um só dia! E onde iria eu parar se quisesse trazer a este paralelo o sem número de vítimas sacrificadas por iguais motivos em toda a Alemanha, e na Inglaterra? A Maçonaria, que se diz humana e filantrópica, deseja-nos este mimo só para se livrar da Inquisição, e bem parvos seríamos nós se caíssemos nesses laços já podres, que somente chegam a apanhar avesinhas incautas e desprevenidas.

(a continuar)

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