25/09/16

APÓSTOLO S. TOMÉ PATRIARCA DA ÍNDIA, E O FEITO DOS PORTUGUESES

"Foi, com efeito, a armada de Pedro Álvares Cabral que trouxe com a triste nova de que, afinal, os
habitantes da Índia eram gentios e não cristãos, a de que, para mais de Goa até Cochim havia mais mouros que em toda a costa de África, de Ceuta a Alexandria. Mas foi ela também qu, em Janeiro de 1501, embarcou em Cranganor dois cristãos locais, o Pe. José e seu irmão Matias, que queriam vir à Europa para visitar Roma, Jerusalém e a Mesopotâmia onde residiam os seus patriarcas. A D. Manuel traziam, como precioso dom, terra colhida sobre a tumba de S. Tomé Apóstolo, em Meliapor. Traziam igualmente informações sobre a Índia menos fantasiosas do que as que o piloto mouro e Gaspar da Gama haviam fornecido dois anos atrás. D. Manuel, que continuava a sonhar com a conquista de Jerusalém e a anelar pelo apoio dos cristãos do Oriente, folgou com a vida de José e de Matias; e, na sua Carta aos Reis Católicos, seus sogros, com cujo apoio contava igualmente reportou:
"Naquele reino [Cochim] há muitos cristãos verdadeiros da conversão de São Tomé, e os sacerdotes deles seguem a vida dos Apóstolos com muita estreiteza, nem tendo próprio senão o que lhe dão de esmola e guardando inteira a castidade; e têm igrejas em que dizem missas e consagram pão ásimo e vinho que fazem de passas secas com água, por [não] poderem [de] outro; e mais igrejas não têm imagens senão a cruz; e todos os cristãos trazem vestidos apostólicos com suas barbas e cabelos sem os nunca fazerem, E ali achou certa notícia donde jaz o corpo de São Tomé, que é cento e cinquenta léguas dali na costa do mar numa cidade que se chama Mailapur, de pouca povoação; e me trouxe terra de sua sepultura. E todos os cristãos e assim os mouros e gentios pelos grandes milagres que faz vão a sua Casa em romaria. E assim me trouxe dois cristãos, os quais vieram por seu prazer e por licença de seu prelado para os haver de mandar a Roma e Jerusalém e verem as coisas da Igreja de cá, porque têm que são melhor regidas por serem ordenadas por S. Pedro, e eles crêem que foi a cabeça dos Apóstolos, e serem eles informados delas. E também soube certas novas de grandes gentes de cristãos que são além daquele reino, os quais vão em romaria à dita Casa de São Tomé; e têm reis muito grandes que obedecem a um só e são homens brancos e de cabelo louros e verdes por fortes e chama-se a terra Malchina, donde vem a porcelana, almíscar e âmbar, e tenho leões que trazem do rio Ganges que é aquém deles; e das porcelanas há vasos tão finos que um só vale lá cem cruzados..."
Estas informações repetem-se em mais pormenores na relação pouco depois impressa em Itália com base no que aí referiu o mesmo Pe. José de Granganor, a Relação de José da Índia.

Ignorando-se quase tudo acerca da armada de João da Nova (1501-1502); não se sabe, portanto, se teve algum contacto com os cristãos do Malabar.

É na expedição seguinte - a segunda de Vasco da Gama - que se situa um episódio significativo. Estando o Almirante em Cochim, veio-lhe uma embaixada dos cristãos de Cranganor trazendo-lhe não só presentes, como a vara da justiça de que usavam - espécie de ceptro, vermelho, guarnecido de prata, com três campainhas desse metal - para que passasse a administrá-la aos cristãos locais em nome DelRei de Portugal; e ao mesmo tempo sugeria-lhe que os Portugueses erguessem em Cranganor uma fortaleza. Visivelmente, após os primeiros desaires infligidos aos mouros e ao seu protector, o Samorim, pelos capitães de D. Manuel, os cristãos de Cranganor entreviam uma hipótese de ver restaurados, quem o papel predominante outrora desempenhado pelo seu porto no grande comércio oceânico, antes da escápula da pimenta se ter transferido para Calicut, quer a situação de favor de que a comunidade gozava antes de os muçulmanos se terem tornado senhores do Índico. A entregar da vara da justiça não serviu, contudo, a longo prazo, os efeitos que se esperavam. Refere, de facto, o Pe. Francisco de Sousa que, mais tarde, muitos cristãos que entretanto haviam descido dos Gates a viver sob a protecção dos Portugueses se voltaram a retirar para o interior, não só por se não se quererem conformar com alguns usos litúrgicos ocidentais (...), como também por se não adaptarem à justiça portuguesa, (...) assaz rigorosa nas penas que aplicava.

No ano imediato a este encontro entre Vasco da Gama e os cristãos de Cranganor foi a vez de os de Coulão recorrerem igualmente à protecção dos Portugueses: Afonso de Albuquerque fora aí a assentar feitoria e a confirmar o acordo feito em Cochím com os representantes das autoridades locais; os cristãos da terra pediram-lhe então que interviesse para que lhes fosse restituída a administração do peso da cidade, que lhes cabia por antigo privilégio mas lhes fora recentemente retirada. E quiseram mandar a D. Manuel a cruz principal, de ouro, da sua igreja; mas Albuquerque apenas aceitou que mandassem uma menor, de prata. Passou-se isso em Janeiro de 1504. (...)

Nem em Cranganor nem em Coulão houvera, entretanto, contacto com a hierarquia, já que o único Bispo que então havia na Índia, Mar João, devia estar na sede habitual dos Bispado, Angamel, sita a certa distância da costa.

Foi só durante a monção desse mesmo ano de 1504 que se deu em Cananor, o primeiro encontro entre Portugueses e a hierarquia local. Vindos de Ormuz, eram aí chegados da Mesopotâmia quatro prelados, Mar Yabalah, Mar Tomé, Mar Jacob e Mar Denha; esperando, provavelmente, que passasse a força da monção para prosseguirem a jornada, detiveram-se junto da vintena de portugueses que aí tomava contra da feitoria DelRei dois meses e meio.

Curiosamente, não [se conhece] nas fontes portuguesas qualquer menção deste encontro, do qual subsistem dois relatos em siríaco; a Carta, que especialmente nos ocupa aqui, e uma breve notícia consignada por Mar Jacob no cílofon de um pequeno calendário litúrgico que copiou durante sua estadia em Cananor.

Eis as circunstâncias em que surgiu o texto que a seguir traduziremos e estudamos.

As relações amistosas entre Portugueses e a hierarquia da Igreja sírio-malabar então encetadas haviam de durar meio século, apenas toldadas de quando em vez por questiúnculas litúrgicas (...). Será preciso esperar pela segunda metade do séc. XVI, pela morte de Mar Jacob, (...) pela criação de uma hierarquia latina na Índia, (...); só então iniciará o Padroado Português uma espécie de guerrilha eclesiástica para fagocitar a velha cristandade de S. Tomé [opinião muito pessoal do autor], o que alcançará em 1599, no Sínodo de Diamper." (A Carta Que Mandaram Os Padres da Índia, da China e da Magna China - Um Relato Siríaco da Chegada dos Portugueses ao Malabar e Seu Primeiro Encontro com a Hierarquia Cristã Local. Luís Filipe F. R. Tomaz. Coimbra, 1991)

1 comentário:

Telmo Pereira disse...

Eis um testemunho da situação única e superior da Igreja. Admira como depois de tantos séculos, longe da influência de Roma, tinham ao sucessor de S. Pedro como o chefe da Igreja Católica.

Ouvi dizer que os índios que viviam no actual Brasil acreditavam na vinda de um Messias; será verdade? Se for, parecem colocar-se duas possibilidades: ou lembravam-se da antiga promessa feita nos inícios dos tempos; ou o Apóstolo São Tomé por lá passou, como testemunharam algumas das tribos da parte espanhola e registada pelos missionários espanhóis.

Com os melhores cumprimentos,

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