27/12/16

RELATOS DE UM FIRME LIBERAL (I)

D. José Mascarenhas Barreto, Marquês da Fronteira e de Alorna, firme liberal, deixou-nos a sua vida por escrito nas "Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto ditadas por ele próprio em 1861". Embora não recomendemos a obra como fonte inquestionável para os assuntos relativos às disputas liberais contra o tradicional Portugal, colocamos aqui trechos interessantes pela ordem exacta do livro. A esta primeira publicação damos o nome de:

Do Assassinato de D. João VI até á Ocupação da Guarda

"O projecto estava decidido para o seguinte mês de Setembro, devendo nós sair de Roma ao fim de Maio. Fomos, porém, surpreendidos por uma notícia que muito nos desarrojou e entristeceu: a morte de ElRei D. João VI. Nem o Embaixador nem nós podíamos imagina quem lhe sucedia, não tendo a menor simpatia por nenhum dos seus filhos, porque o mais velho tinha concorrido para que perdêssemos a melhor das nossas colónias e D. Miguel tinha sido de tal conduta, que nenhum indivíduo que se respeitasse o podia desejar para Rei.

Uma manhã fui chamado repentinamente à Embaixada e encontrei, lavado em lágrimas, Monsenhor Cherebini, antigo Núncio em Lisboa, a quem ElRei muito protegia, e com quem simpatizava, um tal Conde Cabral, nosso compatriota, Conde do Sacro Palácio, que, nessa época, era um gravador ordinário, sem ter onde cair morto, e que, hoje, com o negócio de objectos de belas-artes, tem feito tal fortuna, que o consideram rico em Roma! Era porcionista do bolsinho de ElRei D. João VI e soluçava, fazia uma tal lamúria, que não se podia entender, persuadindo-me eu, pelo que via, que o velho Embaixador tinha morrido. Entretanto, porém, na sua câmara e achando-o deitado, foi ele que me pôs ao facto do triste acontecimento.
 
Nesse dia tínhamos um pontifical na Igreja de Santo António dos Portugueses, celebrado por um antigo Núncio em Lisboa, no tempo de D. Maria I, o velho Cardeal Pacca, então nosso Cardeal protector. Aplicou-se logo a Missa por alma do nosso augusto Monarca. Ainda havia no grande edifício de Santo António dos Portugueses alguns eclesiásticos nossos compatriotas. O Capelão-Mor era um português, e um dos padres, familiar do famoso Bispo de Bragança, Monsenhor Lopes, Camarista do Papa, também ali residia.
 
A Embaixada do Brasil era composta duma maneira um pouco extraordinária, ressentindo-se da juventude do novo Império. O Ministro era Monsenhor Freixo, digno eclesiástico, mas que desconhecia completamente o lugar que ocupava; o Secretário parecia mais um criado de servir do que um diplomata, e nenhum falava senão o português.
 
Apesar de grande indisposição que havia ainda entre os portugueses e os brasileiros, existia o maior acordo entre as Legações Brasileira e Portuguesa, vivendo como compatriotas. Recebeu-se a notícia do nascimento do actual D. Pedro II e o nosso Embaixador prontificou logo a nossa Igreja de Santo António para que o Ministro do Brasil ali fizesse cantar um Te Deum, ao qual assistimos todos.
 
[...]
 
Fomos a S. Pedro encomendar-nos, pela última vez, junto ao túmulo dos Apóstolos e subimos ao Vaticano, para sermos abençoados, também pela última vez, pelo Venerando Papa Leão XII, e , saudosos, nos despedimos de numerosos amigos que nunca mais tornámos a ver. O Embaixador, não esquecendo coisa alguma, deu-nos grande quantidade de cartas de recomendação para os seus muitos amigos nas cidades por que íamos passar. Depois dum excelente e concorrido jantar na nossa Embaixada, seguimos na madrugada seguinte o caminho de Perugia, dirigindo-nos a Paris.
 
Fomos convidados, por equívoco, para um jantar: o General Toledo, que então era Ministro de Espanha, um dos absolutistas mais exaltados que tenho encontrado, entendeu que nós partilhávamos as suas ideias políticas e convidou-nos a jantar. Foi um dos mais agradáveis que tenho tido. Nele encontrámos o poeta Lamartine, que então era Secretário da Legação na Toscana, o Príncipe Paulo de Wurtemberg, com a bela Condessa espanhola que ele acompanhava por toda a parte, e alguns artistas célebres da época, tanto francesa, como italianos. A conversação foi muito animada e o jantar extremamente alegre; todos queriam ouvir Lamartine, mas ele pouco disse de interessante naquele dia. O poeta tinha tido uma grande herança e não falava senão nos bons cavalos que tinha mandado vir de Inglaterra e nas belas equipagens que tinha encomendado.
 
[...]
 
O nosso parente, Marquês de Abrantes, D. José, que ali estava e quem não falámos, porque ele procurou sempre evitar-nos, era considerado como uma vítima expulsa da pátria pelos liberais portugueses. Pobres liberais que, naquela época, partilhavam a mesma sorte do Marquês!

D. António de Meneses, I Marquês de Vila Flor,
I Duque da Terceira
(grande líder liberal - um dos suspeitos do regicídio de
D. João VI)
[...]
 
Em Paris tivemos o agradável encontro dos Condes de Vila Flor. O Conde tinha saído de Portugal depois da morte de ElRei D. João VI, de quem era Camarista, para evitar as intrigas da Rainha Carlota que via com maus olhos os Camaristas de seu marido e, principalmente, o Conde de Vila Flor. [Marechal António Severim de Noronha, que foi depois feito por D. Pedro em nome de D. Maria II 1º Duque da Terceira, e honras de Parente da Casa Real]. 
 
Já em Roma tínhamos sabido da resolução que se tinha tomado em Lisboa de reconhecer o filho mais velho de D. João VI, D. Pedro, como Rei de Portugal, o que muito me maravilhou, por conhecer os indivíduos que rodeavam, nos últimos momentos, ElRei e que continuavam a fazer parte do Conselho de Estado do Ministério da Senhora Infanta D. Izabel Maria, Regente. [Portanto... parece que os liberais estavam bem posicionados e discretos].

Supunha que o Conde de Porto Santo, Ministro dos Negócios Estrangeiros, apesar de ser o tipo da probidade e honradez, antigo Védor da Rainha Carlota e adversário do movimento de 24 de Agosto, seria partidário de D. Miguel, mas enganei-me completamente: era grande legitimista e entendeu que a legitimidade à Coroa de Portugal estava em D. Pedro. [os legitimistas não eram aqueles que estavam por D: Miguel, como hoje se diz muito, mas sim aqueles que assentavam a escolha na questão da legitimidade - tanto existiam legitimistas por D. Pedro como por D. Miguel]

O que nunca percebi foi como o Dique de Cadaval, Conselheiro de Estado, com bastante influência naquela época e miguelista pronunciado, como depois provou, estava tanto de acordo em reconhecer os direitos de D. Pedro, que se apressou a fazer com que a Regente nomeasse seu irmão, o Duque de Lafões, para ir cumprimentar o novo Rei, da parte da nobreza de Portugal. [Esta informação é um tanto estranha..., recomenda-se cautela]

Quando cheguei a Paris, as cartas e informações, que me deram muitos compatriotas que ali estavam, era concordes em que a Regente do Reino e os chefes das diferentes cores políticas esperavam tranquilamente as disposições que ElRei D. Pedro IV daria do Brasil. [Está visto que há uma forma internacional que operou de fora para dentro]
 
O nosso Ministro em Paris era o respeitável ancião Pedro de Mello Breyner, pai do actual Conde de Mello, antigo magistrado, que já tinha exercido uma comissão diplomática em Roma, antes da Revolução de 24 de Agosto, honrado cavalheiro, duma rectidão proverbial como magistrado, mas sem formas nenhumas diplomaticamente, apesar de ter maneiras muito distintas, e falando um francês que com dificuldade se podia compreender. Tinha reputação de professar princípios liberais, mas com dificuldade se sujeitava às condições do Governo Representativo. Havia recebido a educação que recebia a velha aristocracia portuguesa no meado do século passado [séc. XVIII], e toda a sua vida tinha sido Desembargador, duas condições que não podiam concorrer para formar um liberal da nossa época.
 
[...]
 
As minhas instruções para Lisboa eram que esperássemos pelo resultado que viesse do Brasil e a minha demora em Paris tinha por fim esperar também aquele resultado, ou para vir para Portugal, se as circunstâncias o permitissem, ou para mandar ir minha filha e esperá-la em algum dos portos de França.
 
No mês de Agosto fomos surpreendidos com a notícia de que o Sr. D. Pedro tinha outorgado a Carta Constitucional e abdicado em sua filha, a Princesa do Grão-Pará, D. Maria II, e muito mais surpreendido fiquei quando o nosso Ministro, Pedro de Mello Breyner, entrou em minha casa e nos apresentou a Carta Régia, pela qual o Sr. D. Pedro me nomeava Par do Reino hereditário, nomeação que também entregou ao Conde de Vila Flor. [então .... estes já estavam reunidos em Roma e designados para estas coisas....!!!]

[...]

Fomos convidados para, em dia designado, comparecermos na Legação e prestarmos juramento ao novo Rei e ao novo Código. As salas da Legação estavam cheias de compatriotas. Os Condes de Penafiel, Subserra e Vila Flor, Braamcamp, Silvestre Pinheiro e outros muitos, prestámos o solene juramento nas mãos do respeitável Pedro de Mello Breyner e quem nos apresentou os Evangelhos foi o célebre Cavalheiro Alpoim, Secretário de Legação e poeta do Quartel General do General patriota Cabreira, e que, depois, foi um dos mais exaltados miguelistas: jurou connosco e recebeu-nos o solene juramento!

Voltar à pátria era a consequência destes acontecimentos, para todos sustentarmos a Regente na manutenção do augusto Código que nos dava a liberdade.

Os emigrados de 1823 estavam, pela maior parte, em Paris, e os seus chefes José da Silva Carvalhão, Moura e Ferreira Borges ali conviviam connosco, celebrando a nova era que se ia inaugurar na nossa pátria.

A falta de meios, falta que honrava muito estes cavalheiros, retinha-os em Paris, enquanto os não arranjavam para empreender a viagem.

Chegado o mês de Setembro, foi necessário separar-me dos meus amáveis companheiros de Paris. Parti para Londres, os Condes de Vila Flor para a Holanda, e meu cunhado e bom companheiro, José da Câmara, para o Havre de Grâce, na companhia da célebre poetisa, M.me. de Sousa e do, então criança, Conde de Morny, hoje Presidente do Corpo Legislativo. Meu cunhado, depois de estar algumas semanas no Havre, embarcou para Lisboa, e os Condes de Vila Flor, depois duma curta viagem na Holanda, vieram reunir-se connosco em Londres.

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Muitas vezes acompanhei, a cavalo, a mãe do dono da casa, a velha Marquesa de Salisbury, que tão velha era, que a cara e mãos pareciam de cortiça, e morreu queimada no seu quarto, poucos anos depois. O Marquês de Palmela ali me apresentou ao Duque de Wellington e, sabendo que eu servia no Exército, perguntou-me em que regimento e, como lhe disse que era no 4 de Cavalaria, fiquei maravilhado da sua memória porque sabia a história do meu Regimento e os nomes dos Comandantes que tina tido durante a Guerra, como se ele tivesse servido no Corpo.

Quando estávamos em Londres, soubemos que tinha havido, no Algarve e noutros pontos do país, movimentos revolucionários contra a Carta Constitucional, proclamando D. Miguel Rei. No mês de Novembro partimos para Lisboa, embarcando junto à Torre de Londres, no vapor Duque de York, que era o primeiro barco a vapor que fazia a carreira de Lisboa, e tínhamos por nossos companheiros de viagem mais quarenta compatriotas.

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Nunca tinha estado separado, por tanto tempo, do meu bom irmão e foi com grande gosto que o abracei e ao nosso amigo João Evangelista. As notícias que nos deram da família foram excelentes; minha filha esperava-nos com alvoroço. As notícias do país, porém, não eram satisfatórias. Meu irmão tinha recolhido, havia pouco, duma campanha que fizera debaixo das ordens do General Saldanha, no Alentejo e no Algarve, contra os sectários de D. Miguel e preveniu-me logo que os negócios iam de mal a pior e que uma parte da guarnição de Lisboa tinha ordem de marcha, entrando no número dos corpos que deviam marchar Cavalaria 4, a que pertencíamos.

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O gosto que tivemos em tornar a ver a filha, os parentes, os amigos e a pátria, depois duma mudança de Governo, só pode ajuizá-lo quem, como nós, tem passado por estas emoções. Muitas vezes depois, passámos por elas, eu, minha mulher e irmão, em consequência dos nossos princípios liberais, e são os que nada sofreram por aqueles princípios, que nos acusam hoje de reaccionários contra a dinastia e liberdade! Faz dó!

Benfica estava em gala e a nossa entrada na residência dos meus maiores muito nos lisonjeou e afectou. A numerosa família esperava-nos no pátio, juntamente com os bons vizinhos. Os sinos dos nossos antigos amigos dominicanos repicavam e uma quantidade de girandolas de foguetes subiu aos ares. Nas salas esperavam-nos minha Avó, tias e muitos parentes de ambos os sexos, e a Comunidade de S. Domingos, com o seu Prior, o nosso bom Fr. Domingos, e que era composta de antigos amigos do meu Pai, que me tinham visto nascer e a meu irmão e que festejavam com efusão a nossa chegada.

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Saindo de Benfica e entrando na sociedade, que naquela época, era muito animada na capital, fiquei maravilhado da revolução que tinha havido na mesma sociedade e da mudança de opiniões políticas em grande parte da aristocracia. Os fidalgos, que, com tanto entusiasmo, haviam proclamado o absolutismo em 1823, lisonjeavam-se muito com o pariato e parecia que se tinham feito liberais. Chegava a ser um pouco caricato o muito que apreciavam o pariato hereditário, não largando a farda de Par nas mais pequenas soirées e, quando a largavam, vestiam um fraque azul com uns botões imensos, em que estavam gravados o manto de Par e a legenda: Par do Reino. Lembro-me de ter dito a alguns que, para a obra ser completa, faltava o nome do digno Par, o que seria útil, para evitar o trabalho duma apresentação.

Encontrava os mais façanhudos miguelistas de 1828, como o Duque de Cadaval, Marquês de Tancos, Conde de Mesquitela e outros muitos, não largando o honroso uniforme e pregando, de missão, a favor da Carta Constitucional e do novo Monarca.

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A Infanta Regente, com os seus Ministros, tinha diligenciado o mais possível e conseguido que os chefes da revolução de 24 de Agosto não fossem eleitos deputados, já por conselhos do Gabinete inglês, já para evitar apreensões do absoluto e quase despótico Gabinete espanhol, já por ferir a suscetibilidade de muitos dos nossos compatriotas que declaravam que eram absolutistas na presença do movimento de 24 de Agosto e que eram liberais na presença da Carta Constitucional, em consequência da diferente origem da Carta da Revolução de 1820.

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As discussões na Camara dos Pares eram, às vezes, animadas, provocadas pelos progressistas de então, que tinham por chefes os Condes de Linhares, da Taipa e da Ponte, o qual, mudando, depois, de opiniões políticas, foi Ministro Plenipotenciário de D. Miguel em Paris e muito nos atormentou a nós outros, emigrados, e muitos esforços fez para transtornar o bom êxito da Causa da liberdade e legitimidade.

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Como antigo Ajudante do General Sepúlveda e tendo saído de Portugal pelas minhas ideias liberais, tinha a reputação de exaltado e muitos dos dignos Pares e Deputados, e mesmo alguns Ministros, desconfiavam de mim e faziam-me sentir a sua pouca simpatia.

Fui, como devia, beijar a mão a Sua Alteza, a Infanta Regente, e friamente recebido por Sua Alteza e pela sua Côrte. Entendi que não devia ir a Queluz, porque me expunha a ser muito mal recebido por Sua Majestade, a Rainha Carlota, apesar de entender que devia ir beijar a mão à augusta Princesa D. Maria Benedicta, de quem meu Avô e Pai tinha tido a honra de ser Vedores, e a quem toda a minha família deveu grandes distinções. Contudo, achei prudente evitar o Paço de Queluz, e evitei-o.

Ei e minha mulher conservámos as mais íntimas relações com os nossos parentes e companheiros de viagem, os Condes de Vila Flor: diariamente os víamos e havia completo acordo entre as nossas opiniões políticas e as de muitos amigos e parente, para a defesa e sustentação do trono da Rainha, a Senhora Dona Maria II, e da Carta Constitucional.

O Gabinete espanhol protegia decididamente os movimentos revolucionários em Portugal a favor de D. Miguel. Os miguelistas invadiam as nossas fronteiras, faziam as suas correrias, tanto nas províncias do norte como do sul, e, quando perseguidos pelas forças liberais, achavam guarida na Espanha.

Os chefes dos miguelistas eram, no norte, o Marquês de Chaves, com os seus parentes e antigos amigos de 1823; no sul, o velho General Maggessi que entrava em Portugal, quando bem lhe parecia, retirando-se para Espanha, quando era perseguido, e sendo ali bem recebido.

O General da Província do Alentejo era o bravo Visconde de Beire, o qual, oficial de Guerra do Roussillon, com todas as campanhas da Guerra Peninsular, cansado e velho, declarava ao Governo que, apesar da sua boa vontade e da sua fidelidade à Dinastia e à Carta, não tinha forças para exercer a comissão de que estava encarregado.

Fui apresentar-me ao meu Regimento e com gosto vi, apesar da amizade que lhe tinha, que o meu antigo Coronel, o Conde de S. Lourenço, tinha sido desligado, pois que eu pouca confiança tinha nele, quando se tratava de defender a liberdade e a dinastia de D. Pedro. O Corpo era comandado pelo Tenente-Coronel, meu parente e amigo, D. Tomás de Mascarenhas. Pouca alteração achei na oficialidade: conservavam-se quase todos os camaradas que ali tinha deixado três anos antes.

[...]

[carta do General Conde de Vila Flor] "Meu Marquês. O Almirante Quintela, que está interinamente com a pasta da Guerra, veio aqui ontem à noite, depois de tu partires, comunicando-me uma ordem de Sua Alteza, a Regente, para eu substituir o Visconde de Beire no comando das Armas da Província do Alentejo; nomeio-te meu Ajudante de Campo, se tu quiseres, e, nesse caso, mostra a carta ao teu Comandante e fica para marchar comigo amanhã".

Desde este momento, tive a honra de principiar a minha carreira de Ajudante de Campo do bravo General, a quem a Pátria deve a liberdade e a Dinastia o trono, a de partilhar, como ele, todos os perigos e trabalhos, até à Convenção de Évora Monte. Mostrei a carta ao Tenente-Coronel Comandante e, recebendo ordem para me apresentar ao General, assim o fiz logo, tendo grande prazer quando soube por ele que os meus camaradas eram o capitão Mendes, mais tarde Barão do Candal, de quem já tinha sido camarada, como Ajudante do General Sepúlveda, e o meu antigo amigo de infância, camarada do Regimento 4, o alferes D. António José de Mello, hoje Inspetor Geral de Cavalaria.

[...]

O resultado do combate, em forças tão diminutas, faz ver como ele foi renhido. Os dois esquadrões rebeldes foram completamente destroçados, ficando vinte e cinco homens mortos no campo e vinte e nove prisioneiros. Os rebeldes retiraram-se para Espanha, entrando pela Codeceira. A nossa artilharia disparou alguns tiros sobre as colunas inimigas, fazendo-as retirar aceleradamente, algumas em debandada. Nós acamámos junto à Codeceira e, na madrugada seguinte, fizemos um reconhecimento, entrando em Espanha, conde soubemos que Maggessi seguia e estrada da Ponte de Alcântara.

[...]

A Benfica vieram muitos liberais abraçar-me e festejar o primeiro triunfo das armas constitucionais. Quando se tem vinte e três anos, suporta-se todo o cansaço e eu, como não partia naquela noite, fui com minha mulher para o Teatro de S. Carlos, onde tive uma pequena ovação, não por causa da minha pessoa, que pouco importante era, mas pela notícia que tinha trazido.

[...]

Em Abrantes apresentei-me ao General e descobri nele, não uma resolução de se revoltar, mas a decisão de não se comprometer. Não acreditava na estabilidade da dinastia de D. Pedro e da Carta Constitucional, mas não julgava segura a causa de D. Miguel nem bastante forte o Exército miguelista, comandado pelo Marquês de Chaves. Percebi que o seu projecto era esperar o resultado dos acontecimentos. A guarnição eram algumas companhias do Regimento 20 outras do Regimento de Milícias de Tomar.

[...]

Preveniu-me ele de que, ao romper do dia, devíamos marchar sobre a Guarda que estava ocupada pelas forças miguelistas do comando do Visconde de Mollelos. (...)

Mal tinha descansado alguns momentos, os tambores e os clarins anunciavam a marcha. Seguimos sobre o Fundão, Alpedrinha e Covilhã e reunimos todas as forças do General Vila Flor com as do General da Província, João de Lacerda, acampando junto a Belmonte.

O General João de Lacerda e seu irmão eram os únicos parentes do Marquês de Chaves que seguiam a causa da liberdade. Apesar dos seus sentimentos liberais, percebia-se que a sua posição era muito desagradável, porque tinham, do lado contrário, todos os seus parentes e amigos de infância. Declarava-nos francamente que, se conservava o comando, era porque a honra militar assim o exigia.

Servia-lhe de Chefe de Estado Maior o seu parente, Major Afonso Botelho, hoje deputado histórico e progressista e então o liberal mais tíbio e vacilante que encontrei, receando muito um comprometimento sério; percebia-se-lhe a grande vontade de que tudo acabasse em bem para os seus parentes e amigos Silveiras, importando-lhe pouco a causa da liberdade e da dinastia. A indecisão, que o acompanhou sempre, é que fez com que ele não desertasse; mostrava, porém, a sua boa vontade, não querendo só pô-la em execução: queria passar para as fileiras inimigas com alguma importância.

O General Lacerda, seu parente, muito bem percebia as suas intenções, mas pouca importância lhes dava, porque sabia impor-se aos seus subordinados e conservar o espírito de comando.

O Major Afonso Botelho é prova disso, porque foi sempre um bravo soldado.

O General Conde de Vila Flor tinha por Chefe de Estado Maior o Major Pereira Pinto, antigo capitão do Exército de Napoleão, tendo feito as campanhas da Alemanha e da Rússia, distinto oficial e muito instruído; era filho da Beira Baixa e muito conhecedor do nosso país, tendo a sua topografia na cabeça.

[...]

Na véspera do dia de Natal ocupámos a Guarda que estava coberta de neve, como uma cidade da Rússia ou da Polónia. A Guarda tem a reputação de ser a cidade mais fria, não só de Portugal, mas de toda a península hispânica; o frio e a falta de lenha fizeram com que nos conduzíssemos um pouco como em país conquistado, sendo necessário, para nos aquecermos, queimar uma parte das portas das casas onde habitávamos.

Ali fizemos alto, mandando o General colocar os postos avançados sobre as estradas de Almeida e Celorico, e nessa noite tivemos um grande alarme, porque os reverendos cónegos, apesar da posição delicada em que a cidade estava, entenderam que, à hora do costume, os sinos da catedral deviam repicar, anunciando a Missa do galo. Pegámos em armas, porque julgámos que os sinos tocavam a rebate, de acordo com as forças de Mollelos, e que nos queriam surpreender, mas, em lugar dum combate, tivemos uma solene Missa do galo, a que assistimos em grande número.

(a continuar)

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