04/02/18

"DEFESA DE PORTUGAL" - AS TREVAS em PORTUGAL (a)


As Trevas em Portugal

"Nos fuimus fortes;et nos modo sumus; et nos aliquando erimus."

Dizem comumente os lamentadores dos Séculos passados que via faltando a Religião; e eu digo também que sim, porque falta a justiça; e falta a justiça, porque a razão falta. Qual a causa por que a razão falta ao homem, que é racional? Porque lhe falta a luz. Pois aí estão as trevas, as quais não são outra coisa, que privação, carência, ou falta de luz: o homem não vê a luz; somente por meio da luz vê os corpos lúcidos, os que brilham, ou aqueles, sobre que reflectem os raios da luz: isto dizem os Filósofos modernos, e dizem bem, se sabem o que dizem: o homem também não vê as trevas, porque não tem luz para as ver: também dizem isto os Filósofos. Mas o Vulgo diz que a luz se vê, e que as trevas se apalpam, ainda que se não vêm: não sei quem diz melhor: digo somente que, se o Vulgo se meter a Filósofo, pode perder as esperanças de ver a luz, e fique certo que só trevas apalpará. Eu falo nestas coisas com licença dos Filósofos, ou ao menos com título: todavia certo como estou, de que os Filósofos não têm feito nas Ciências, ou pouco menos, senão baralhar as ideias, adoptar outros vocábulos, ralhar uns dos outros, e saber menos o que mais ralha, meto o título do Filósofos no meu Larraga, e como Clérigo de mão furada, que não sabe mais que do seu Larraga, e não fará pouco se o entender bem, levanto a minha voz, e digo: Não há homem vivente que tenha visto a luz: Logo todos os homens estão em trevas. Ora aí se armam contra mim quantos campam de lidos, e de lentes, e já que lhes nego a luz buscam apalpar-me nas trevas; devagar, Senhores Mestres: Deus é a luz, e só ele luz: Quem viu a Deus? Nenhum vivente: aí está pois como todos os homens estão em trevas. Esta linguagem é Sagrada, e é sublime; desço algum tanto da altura, a que a Fé, que é uma participação enigmática da luz, me elevara, e digo: todos os homens (e nesta proposição ajunto as mulheres, já que as dos nossos dias querem correr parelhas com os homens) estão em trevas mais, ou menos; quero dizer, em trevas mais ou menos densas, sinais, ou menos frangíveis, dissipáveis, ou penetráveis: aqueles que se dizem ilustrados são os que estão em trevas mais voláteis, mais versáteis, e, deixem-me assim dizer, algum tanto diáfanas; esta linguagem não é totalmente imprópria para explicar verdades, que de mistura são Teológicos, e Filosóficos. Os homens não conhecem as coisas em toda a sua essência, ou em toda a sua cognoscibilidade: as verdades, ou Divinas, ou Humanas, nunca atingem a evidência com tanta força, que o homem enquanto vive não possa vê-las de uma forma obscura: finalmente a razão humana nunca está cheia cá na terra; mais defeituosa que a Lua, a qual recebe do Sol toda a sua claridade, a razão do homem sempre está em quarto minguante, ou no último quarto do seu quarto ocidente, que bem pode dizer-se que está em trevas, pois a luz, que tem, ou está a despedir-se que está em trevas, pois a luz, que tem, ou está a despedir-se, ou já no seu ocaso.

Venho de falar, e continuo Teológica, e Filosoficamente: todo o homem está em trevas; mas todo ele tem em si disposição, capacidade, ou potência para ver a luz, ou a substância, que emitem a luz. Esta luz não está no homem; recebe-a o homem. De quem? De Deus. Mas como pode persuadir-se que Deus comunica a luz ao homem? Todos os conhecimentos primordiais, ou, chamemos-lhes assim, constituintes do homem, ou eles digam respeito à Religião, ou à Sociedade, ou aos misteres da conservação, e da vida, vem da tradição; não do discurso do homem, sim de que o homem foi ensinado de uma maneira qualquer a tudo o que era mister com referência a Deus, aos outros homens, e a si mesmo. Só Deus pôde ensinar o homem, pois que nenhum homem nasceu ensinado: a razão pois do homem foi ensinada no seu princípio, foi ilustrada, foi irradiada: Logo todos os Conhecimentos necessários ao homem, ou digam respeito à Religião, ou à Sociedade, ou à Filosofia necessária, vieram ao homem do ensino; ou, que vale o mesmo, todas as verdades primitivas são tradicionais. Eis Deus; eis a tradição afugentando as trevas, luzindo ao homem, que em trevas estava envolto, para que veja o que lhe convém, e o que não; para que saiba distinguir o bem do mal, a verdade da mentira, a ciência do erro: enquanto o homem não perder de vista essa tocha da primitiva tradição, a qual, não obstante que parece esconder-se no princípio já não conhecido de tão longos Séculos como o homem conta, todavia, ainda mesmo assim ao longe, desde alguma luz; em quanto não virar as costas a esta luz, que ainda lhe aparece; enquanto andar no seguimento desta luz, que é uma faiscasinha de Deus que é luz verdadeira, poderá dizer-se que o homem não está totalmente em trevas; antes, que anda, e vê por onde anda, rompendo, e afastando as trevas para um, e outro lado; poderá dizer-se que a razão do homem ainda atinge muitas verdades, e que é capaz, no seguimento desta luz, de atingir todas as que lhe são necessárias para se saber dirigir com Deus, consigo mesmo, e com os outros homens: eu falo de todas as verdades, e de todos os conhecimentos necessários ao homem debaixo das ditas considerações, e insisto que todos eles vieram ao homem pela tradição, ou pelo ensino, e notícia, que no seu princípio lhe foi dado: O homem não formou a ideia de Deus: esta ideia vem-lhe da tradição: o primeiro homem a transmitiu ao segundo; Deus mesmo a ensinou ao primeiro; outro tanto deve dizer-se de todas as ideias verdadeiras primitivas, e necessárias ao homem; não é tempo de fazer demonstrações; os princípios, tenho: excepto as verdades Metafísicas, que pendem das nossas ideias, do ajuste que fazemos com as palavras, de combinações a nosso arbítrio, porque essas, muito agradáveis, e mesmo vistosas que pareçam, não são necessárias ao homem, nem para a Religião, nem para a Justiça, nem para a Sociedade.

(continuação, parte b)

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